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O escambo está de volta e salva vidas em tempo de confinamento na Argentina

Os clubes de troca sem dinheiro que se multiplicaram durante recessão de 2001, voltaram em 2018 e agora tentam se adaptar à pandemia da Covid-19
Clube de trocas durante a crise econômica de 2001: milhares de argentinos encontraram na troca de produtos uma alternativa para sobreviver Foto: Ali Burafi
Clube de trocas durante a crise econômica de 2001: milhares de argentinos encontraram na troca de produtos uma alternativa para sobreviver Foto: Ali Burafi

ENSENADA, ARGENTINA — O Ensenada Alumni Club já foi um local de apresentações musicais agitado. Nas paredes pintadas de vermelho, há murais de pedra e os restos de um palco de madeira. Uma porta larga se abre para um quintal de piso de cimento. As ervas daninhas que crescem incontrolavelmente são evidências de negligência. Dois anos atrás, um clube de trocas reviveu o Alumni como um ponto de encontro para o bairro. Estamos a 60 quilômetros de Buenos Aires e um dos 200 centros de troca da Argentina opera aqui. Toda terça-feira, cem membros trocam o que produzem no local e acrescentam uma renda extra. Mas as reuniões foram cortadas de um dia para o outro com a quarentena decretada no dia 20 de março, para combater a pandemia do novo coronavírus . Atualmente, os sócios resistem e se reinventam com ferramentas virtuais.

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Os clubes de trocas nasceram em 1995, como um sistema sem dinheiro. O parceiro que assa o pão o troca pelo tecido que outro parceiro faz, e assim por diante. Se os valores não forem comparáveis ou as necessidades não coincidirem, aa mercadoria é paga com créditos que servem apenas na comunidade. Quando a crise econômica de 2001 deixou centenas de milhares de argentinos na pobreza, a troca já estava lá para ajudá-los.

— Esse foi o ano do boom, com 6 mil clubes de troca em igrejas, sinagogas, salões ou clubes. Havia 2,2 milhões de pessoas em nossa rede — afirma Rubén Ravena, um dos fundadores do sistema.

As reuniões do clube de trocas contavam com 10 mil pessoas em um só lugar e os créditos começaram a circular incontrolavelmente. O sistema foi vítima de seu próprio sucesso e da pressão escancarada de câmaras de comércio e bancos. Os processos judiciais choveram sobre os organizadores e os clubes acabaram. Há dois anos, a crise no governo de Mauricio Macri restaurou a prática.

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— Tivemos que baixar o perfil. Conhecendo o nível de sabotagem que sofremos e os sentimentos controversos que geramos em 2002, incentivamos pequenos grupos. Hoje existem 200 clubes e recomendamos que eles não tenham mais de 50 pessoas, quando durante a crise de 2001 eles tinham 30 mil associados — explica Ravena.

Ensenada é uma pequena cidade de casas baixas, satélite de La Plata, capital da província de Buenos Aires. Seus moradores são de classe média e baixa, trabalhadores com salários médios ou muitos outros informais que vivem diariamente. Em Ensenada, existem três clubes de troca. Daniel Branda coordena o que acontece em Alumni. Todo seu esforço é agora para salvá-lo da paralisia em que o medo causado pelo novo coronavírus gerou.

— Na primeira etapa da quarentena, cortamos tudo, pensando que em 15 dias retomaríamos. Então, nosso problema era que não podíamos mais reunir pessoas no clube, porque havia 50 participantes por troca. Depois, reativamos a troca por ordem — explica.

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Trancados como estão em casa, os parceiros recebem pedidos no WhatsApp e os entregam em um ponto de encontro. Dessa forma, eles evitam a aglomeração de pessoas.

O sistema é novo e os parceiros estão confiantes de que funcionará. Como Patricia Amado, uma sócia de 52 anos que ingressou no clube em 2018, "por necessidade", depois de ficar viúva.

— Aproximei-me da troca através da minha filha, porque era a única entrada que tínhamos. Trouxemos roupas. Produzimos e levamos mercadorias para continuar consumindo. Agora eu faço pão — afirmou, para completar: — Eu vivo apenas disso. Agora que tudo está parado, trabalho uma vez por semana em casas de família, mas preciso que a troca seja reativada o mais rápido possível, pelo menos por telefone.

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A Argentina encerrará este ano com a terceira queda consecutiva em seu Produto Interno Bruto (PIB), inflação acima de 50% e temerosa nova inadimplência em sua dívida externa. A incerteza é tanta que muitos já pensam em um colapso de dimensões semelhantes ao de 2001. Carmen Deboe, de 52 anos, é uma sobrevivente dos clubes de troca de 2002. Dois anos atrás, ela voltou a trocar em Alumni, encurralada pela crise, assim como Patricia Amado.

— Sempre fui independente e isso ajuda, porque hoje tudo está paralisado e com a pandemia ficou mais complicado. Eu vendo o que trago por créditos e troco por outra coisa que preciso. Agora eles estão nos enviando mensagens para coordenar as trocas — explica.