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O Nobel da Paz que declarou guerra: a trajetória de Abiy Ahmed, o controverso primeiro-ministro da Etiópia

Saudado inicialmente como reformador, dirigente mais jovem da África é acusado de provocar crise humanitária e, ainda assim, ganhou eleições
Abiy Ahmed, o premier da Etiópia, na sede do governo em Adis Abeba. Para analistas, ele reproduz sistema autoritário que prometeu combater Foto: Finbarr O'Reilly / NYT
Abiy Ahmed, o premier da Etiópia, na sede do governo em Adis Abeba. Para analistas, ele reproduz sistema autoritário que prometeu combater Foto: Finbarr O'Reilly / NYT

Aos 43 anos, ele ganhou o Nobel da Paz e foi considerado o político que reformaria a Etiópia. À beira dos 45, que completa em agosto, é acusado de transformar o país no palco de uma das maiores crises humanitárias da atualidade.

Líder mais jovem da África, o primeiro-ministro etíope, Abiy Ahmed, de certa forma reflete a complexidade do segundo país mais populoso do continente. Ao assumir o cargo há três anos, ele foi rotulado como salvador no exterior e hoje vê essa euforia se desintegrar. No país que prometeu unir, a divisão aumenta.

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Abiy foi escolhido como premier em 2018, após 27 anos de governo da repressiva coalizão liderada pela Frente de Libertação do Povo Tigré (FLPT), etnia que representa 5% da população etíope. Ele é o primeiro oromo a liderar a Etiópia, ainda que esse grupo étnico seja o maior do país, com um cerca de um terço da população. A história do premier, no entanto, está ligada à da FLPT, com a qual ele hoje trava uma guerra na região de Tigré.

Abiy nasceu em Bershasha, na região de Oromia. Em 1991, aos 14 anos, uniu-se à guerrilha que no mesmo ano derrubaria o regime comandado por Mengistu Haile Mariam. Na guerrilha, de maioria tigré, Abiy acabou aprendendo tigrínia, o idioma da etnia. Isso lhe permitiu ascender na carreira militar, uma vez que a Frente Democrática Revolucionária do Povo (FDRPE), que assumiu o governo do país, era liderada pela FLPT, dominante nas Forças Armadas.

— Ao longo de toda a sua vida, Abiy serviu no antigo sistema da FDRPE. Ele é, como se mostra hoje, um produto dessa estrutura autoritária — disse ao GLOBO Kjetil Tronvoll, que pesquisa a Etiópia e a Eritreia há mais de 30 anos e é professor de estudos de paz e conflito na Universidade Bjørknes, na Noruega.

Protestos antes e depois

Nas Forças Armadas, Abiy trabalhou nas áreas de comunicação e inteligência. Em 1995, foi enviado para Ruanda após o genocídio de integrantes da etnia tutsi, como parte de uma missão da ONU. Ele foi eleito para o Parlamento em 2010 pelo Partido Democrático Oromo, um dos quatro que faziam parte da FDRPE, e ficou conhecido na política em 2015, ao mediar uma onda de violência em ocupações de terras em Oromia.

Naquele ano, protestos eclodiram, principalmente de jovens oromos, que reclamavam da marginalização histórica. Centenas de pessoas morreram, e opositores e jornalistas foram presos nos atos.

O desgaste da FLPT e a sorte catapultaram Abiy ao poder. Com a renúncia em 2018 do premier Hailemariam Desalegn, que também deixou a o comando da FDRPE, ele foi eleito líder da coalizão governista e, automaticamente, chefe de governo. O nome mais forte de seu partido na época era Lemma Megersa, chefe da região de Oromia, mas ele não era parlamentar e, portanto, não poderia se tornar primeiro-ministro.

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O início do governo de Abiy foi impressionante: presos políticos foram libertados e partidos antes proscritos foram legalizados. Ele também fez um acordo com a vizinha Eritreia para encerrar um conflito que perdurava desde 1998. O conjunto lhe deu o Nobel .

Ao receber o prêmio, em outubro de 2019, Abiy se recusou a participar de uma entrevista, tradição entre os escolhidos. O motivo era simples, apontam analistas: sua lua de mel na Etiópia já tinha acabado. Jornalistas passaram a ser presos novamente, e os conflitos étnicos haviam retornado.

A Etiópia é formada por mais de 80 grupos étnicos, a maioria historicamente marginalizada. Muitos pesquisadores acreditam que o retorno das tensões não poderia ter sido evitado. Ainda assim, alguns destacam que Abiy acabou piorando a situação.

O premier já vinha adotando um discurso de união nacional, no qual a Etiópia seria uma só, que não foi aceito por líderes de alguns dos grupos do país. Dois meses após receber o Nobel, ele desmantelou a FDRPE e criou o Partido da Prosperidade (PP). A decisão enfureceu a FLPT, que vinha perdendo cargos importantes no governo. Em meados de 2020, o assassinato de um popular cantor oromo — atuante nos protestos que catapultaram Abiy ao poder — revoltou o grupo étnico, insatisfeito com a gestão do premier.

Soldados de Tigré inspecionam destroços de avião federal derrubado Foto: Finbarr O'Reilly / NYT
Soldados de Tigré inspecionam destroços de avião federal derrubado Foto: Finbarr O'Reilly / NYT

Centenas de pessoas morreram em confrontos, e líderes oromos foram presos. Encurralado, Abiy recorreu a métodos antigos, dizem analistas. Outros, principalmente na capital, pensam diferente.

— Pessoas carregando bastões? Queimando casas? Não houve manifestações pacíficas — alega Asnake Kefale, professor de ciências políticas da Universidade de Adis Abeba. — Esses líderes políticos de que você está falando transmitiram discursos de ódio, incitando as pessoas a atacarem minorias. O governo foi forçado a adotar medidas.

Nos meses seguintes, Abiy demitiu Lemma, seu antigo aliado, do cargo de ministro da Defesa, depois que ele criticou algumas de suas decisões, como a criação do PP.

— Eu diria que Abiy é muito bom em trair seus amigos — opina Yohannes Woldemariam, professor etíope de relações internacionais da Universidade do Colorado. — Ele vai usá-lo e jogá-lo fora.

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A pior crise do governo de Abiy, no entanto, veio no final do ano passado, quando tropas federais foram enviadas a Tigré para retirar a FLPT do poder na região, iniciando uma guerra civil que se arrasta há mais de oito meses. A ofensiva ocorreu depois de o partido ignorar a decisão de Adis Abeba de adiar as eleições legislativas de 2020 para 2021, por causa da pandemia, e de um ataque dos tigrés a uma base federal.

Esse trecho da história, no entanto, é opaco. Alguns, como Asnake, acreditam que esses dois fatores levaram à guerra e que Abiy se viu sem opções, precisando agir contra a liderança tigré. Outros, como Tronvoll, alegam que o conflito estava planejado há muito, e que o presidente eritreu, Isaias Afewerki, inimigo da FLPT, é uma das mentes por trás dele.

As atrocidades são enormes. Estimativas apontam que mais de 900 mil pessoas em Tigré passam fome, milhares já morreram, e o conflito acumula relatos de estupros e massacres. A maioria das acusações recai sobre militares da Eritreia e milícias da etnia amhara, ambos aliados de Abiy. O premier, que chegou a declarar vitória , viu em junho as forças da FLTP retomarem a capital regional Mek’ele .

Logo em seguida, em julho, o partido de Abiy obteve uma vitória esmagadora nas eleições, garantindo mais um mandato para o premier. Apesar de o pleito ter sido considerado mais democrático que os anteriores, a votação em Tigré não ocorreu e foi adiada em diversas zonas eleitorais por causa de conflitos. Houve boicote de alguns partidos, alegando perseguição de seus membros. A vitória de Abiy era esperada, mas isso não significa que o apoio é o mesmo de 2015.

— Ele perdeu apoio da população oromo, especialmente dos jovens — afirma Merera Gudina, líder de um dos partidos de oposição que boicotaram a eleição, o Congresso Federalista de Oromo. — Nos últimos três anos, o partido [de Abiy] vem se recusando um diálogo nacional.

Muito antes de todas essas crises, aos 7 anos, Abiy ouviu de sua mãe que ele era único e que iria para o “palácio” . Anos depois, antes de chegar ao poder, ele disse a altos funcionários que “seria seu chefe”. Depois de três anos no poder, uma pergunta permanece: qual será o legado de Abiy depois de deixar o palácio?