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O que se sabe sobre o precário sistema de saúde da Coreia do Norte, que agora enfrenta surto explosivo de Covid-19

País é um dos dois únicos do mundo onde campanha de vacinação ainda não começou; problema é agravado por uma severa desnutrição e a falta dos recursos mais básicos
Pessoas usando máscara em frente à Estação de Pyongyang em uma foto de abril de 2020, quando a pandemia ainda estava no início Foto: KYODO Kyodo / REUTERS
Pessoas usando máscara em frente à Estação de Pyongyang em uma foto de abril de 2020, quando a pandemia ainda estava no início Foto: KYODO Kyodo / REUTERS

SEUL — Na quinta-feira, a Coreia do Norte admitiu enfrentar um surto de Covid-19 pela primeira vez desde o início da pandemia, há mais de dois anos. E, nesta sexta-feira, anunciou a morte de seis pessoas por uma febre que se espalhou "explosivamente" pela Coreia do Norte, confirmando que uma delas morreu por uma infecção pela variante Ômicron .

A mídia estatal não confirmou o número total de casos de Covid-19 até agora, mas disse que mais de 350 mil pessoas apresentaram sintomas de febre desde o final de abril.

A informação causou preocupações de que o vírus possa devastar um país com um sistema de saúde muito precário, com poucos recursos, sem capacidade de testagem em larga escala e onde a vacinação ainda não começou e a população enfrenta severa desnutrição.

Desde o início da pandemia, a Coreia do Norte ainda não reconhecera o registro de nenhuma infecção por Covid-19. Na quinta-feira, contudo, o país não só reconheceu centenas de milhares de casos suspeitos, mas decretou "sistema máximo de prevenção de epidemias de emergência" e impôs confinamento nacional.

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Atendimento em troca de cigarros e álcool

O sistema de saúde norte-coreano é um dos piores do mundo, classificado em 193º entre 195 países, de acordo com uma pesquisa da Universidade Johns Hopkins de 2021.

De acordo com as autoridades, os cuidados de saúde são gratuitos para todos, mas ONGs dizem que a população há muito tem de pagar por serviços médicos essenciais, geralmente com cigarros ou álcool.

Famílias de pacientes devem comprar remédios nos mercados clandestinos e médicos são forçados a atender fora de seus expedientes, sem notificar as autoridades, para assim ganharem a vida, de acordo com Sokeel Park, da organização Liberdade na Coreia do Norte.

Não há hospitais com unidades de terapia intensiva em áreas rurais ou pequenas cidades, onde vive a maioria dos 25 milhões de habitantes da Coreia do Norte, disse o pesquisador Choi Jung-hun, que trabalhou como médico na Coreia do Norte antes de deixar o país.

Muito pouco se sabe sobre a saúde da população, mas a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou em 2018 que doenças não transmissíveis como diabetes são responsáveis por 84% das mortes na Coreia do Norte.

Ahn Chan-il, um dissidente que virou pesquisador, disse que a saúde precária, especialmente devido à desnutrição, torna a Coreia do Norte altamente vulnerável à Covid-19.

— A maioria dos norte-coreanos sofre de desnutrição crônica — afirmou Lina Yoon, pesquisadora da Human Rights Watch.

Sem vacinação e testes

No início da pandemia, a Coreia do Norte fechou as suas fronteiras, cortando o comércio, suspendendo voos e ordenando disparos contra qualquer pessoa que cruzasse a fronteira ilegalmente da China.

Em janeiro, o país afrouxou as restrições na fronteira com a China. Grupos humanitários atribuíram a medida aos problemas econômicos cada vez maiores e aos riscos ao fornecimento de alimentos para milhões. Em abril, uma ponte que liga Dandong, na China, a Sinuiju foi fechada a pedido de Pyongyang, após a cidade chinesa registrar casos de Covid.

Pyongyang diz que a fronteira fechada permitiu manter o vírus sob controle, mas não aproveitou a oportunidade para vacinar sua população. No ano passado, o governo rejeitou uma oferta de 3 milhões de doses da vacina chinesa, dizendo que deveriam ser dadas aos "países que mais precisam".

Isso faz com que, segundo a OMS, somente a Coreia do Norte e a Eritreia ainda não tenham começado campanhas de vacinação contra o vírus.

O país também  recusou a vacina AstraZeneca proposta no programa Covax, supostamente por não desejar atender a padrões de monitoramento internacional. Isso fez com que o Covax reduzisse as doses alocadas para o país.

A mídia estatal disse nesta semana que a Coreia do Norte usou "análise genética" para diagnosticar pacientes com Covid, mas especialistas dizem que as capacidades de teste do país são severamente restritas, e duvidam desses números.

Até o final de março, apenas 64.207 dos 25 milhões de habitantes da Coreia do Norte tinham feito um teste para a Covid, e todos os resultados tinham resultado negativo, segundo os dados mais recentes da OMS.

— Supondo que eles estejam em sua capacidade máxima: podem realizar 400 testes por dia no máximo. Isso não é o suficiente para testar 350 mil pessoas com sintomas — disse Kee Park, da Harvard Medical School, que trabalhou em projetos de saúde na Coreia do Norte.

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A Coreia do Norte disse no ano passado que desenvolveu seu próprio equipamento de reação em cadeia da polimerase (PCR) para realizar testes de coronavírus, e a Rússia disse que entregou um pequeno número de kits de teste.

Mas o país sofre severas sanções devido ao seu programa de armas nucleares, e as fronteiras fechadas impediram a chegada de muitos suprimentos.

Carência crônica de recursos e infraestrutura

De acordo com o último Índice Global de Segurança da Saúde em dezembro, a Coreia do Norte ocupa o último lugar no mundo na capacidade de responder rapidamente e mitigar a propagação de uma epidemia.

Embora tenha um grande número de médicos treinados e a capacidade de mobilização e organização rápida em caso de emergências, o sistema de saúde da Coreia do Norte está cronicamente carente de recursos.

Kwon Young-se, o novo indicado da Coreia do Sul para ser o ministro da Unificação, responsável pelos laços intercoreanos, disse em sua audiência de confirmação na quinta-feira acreditar que o Norte não tem até os suprimentos médicos mais básicos, como analgésicos e desinfetantes.

Cada aldeia norte-coreana tem uma ou duas clínicas ou hospitais, e a maioria dos hospitais está equipada com instalações de raios-X, "embora não necessariamente funcionais", disse a OMS em seu relatório de Estratégia de Cooperação com o País de 2014-2019.

Um pesquisador independente de direitos humanos da ONU informou em um relatório em março que "questões crônicas atormentam o sistema de saúde do país, incluindo falta de investimento em infraestrutura, pessoal médico, equipamentos e remédios, fornecimento irregular de energia e instalações inadequadas de água e saneamento".

Não está claro se a Coreia do Norte impôs alguma regra sobre o uso de máscaras desde o início da pandemia. Às vezes, os cidadãos eram vistos usando máscaras, mas também sem máscaras em alguns grandes eventos políticos que mobilizaram dezenas de milhares de pessoas.

O próprio ditador Kim Jong-un só foi mostrado pela primeira vez usando uma máscara na reunião de resposta à Covid na quinta-feira. Não está claro se ele está vacinado ou não.

Desafio político

O surto pode representar um desafio político para o líder autoritário:

— Kim ordenou a mobilização de suprimentos médicos de reserva, o que significa que, na Coreia do Norte, eles agora usarão reservas de guerra e que os hospitais gerais ficaram sem remédios — disse Thae Young-ho, ex-diplomata norte-coreano que desertou para o Sul em 2016 e agora é parlamentar.

Ji Seong-ho, outro parlamentar sul-coreano que deixou o Norte em 2006, disse que o vírus pode se espalhar rapidamente, em parte devido à falta de um sistema médico funcional.

— Um grande número de pessoas morreu durante a fome (nos anos 1990) depois que a febre tifoide eclodiu. Foi um pesadelo para o regime norte-coreano e para o povo norte-coreano — disse Ji em uma sessão parlamentar.

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Quanto à ajuda internacional, China, Coreia do Sul e OMS imediatamente ofereceram seu apoio. O novo governo em Seul se declarou disposto a enviar vacinas.

Mas o regime de Kim, que realizou disparos de teste de três mísseis balísticos proibidos horas após o anúncio dos primeiros casos de Covid, não parece querer auxílio.

Especialistas acreditam, no entanto, que ele não terá escolha a não ser aceitá-lo.

Para alguns, ao anunciar publicamente na mídia internacional que está enfrentando uma grande epidemia, o regime de Pyongyang já pede socorro:

— Estão enviando uma mensagem indireta de que no futuro poderão pedir ajuda aos Estados Unidos ou a organizações internacionais com vacinas — disse Yang Moo-jin, professor da Universidade de Estudos Norte-Coreanos, em Seul.