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Pandemia desafia projeto de Putin de continuar no poder depois de 2024

Avanço da Covid-19 afetou popularidade e planos do governo, que incluíam referendo sobre mudança constitucional e desfile para marcar os 75 anos do fim da Segunda Guerra
Vladimir Putin, ao lado do ministro de Emergências, Yevgeny Zinichev, durante videoconferência na residência oficial de Novo-Ogaryovo, perto de Moscou Foto: ALEXEY DRUZHININ / AFP
Vladimir Putin, ao lado do ministro de Emergências, Yevgeny Zinichev, durante videoconferência na residência oficial de Novo-Ogaryovo, perto de Moscou Foto: ALEXEY DRUZHININ / AFP

"Estamos vivendo em tempos turbulentos, dinâmicos e contraditórios (...) e em uma alegre ansiedade, estamos aguardando as badaladas do relógio, acreditando e esperando que nossos pedidos se realizem."

Com essas palavras, Vladimir Putin entrou nas casas de milhões de russos na noite de Ano Novo de 2020, com um discurso positivo e de esperança.

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Quase cinco meses depois, nem o mais pessimista dos russos poderia imaginar que o país viveria uma das maiores crises de sua história recente, com milhares de pessoas nos hospitais, mais de 1.300 mortos e uma economia abalada não apenas pela Covid-19, mas pela queda do preço do petróleo decorrente da redução da demanda global provocada pela pandemia e de disputa com a Arábia Saudita.

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Mais que o impacto social e econômico, a pandemia se apresenta como o maior desafio para Vladimir Putin desde sua chegada ao poder, há 20 anos. "Ele está com medo, com medo de seus números e do sistema que ele levou 20 anos criando", afirmou Gleb Pavlovsky, ex-assessor do Kremlin, em entrevista ao New York Times.

Vulnerabilidades

Apesar de inicialmente louvado, inclusive pela Organização Mundial de Saúde, Putin e a resposta russa à Covid-19 não evitaram que o número de casos superasse nesta segunda-feira os 145 mil. Vulnerabilidades conhecidas da Rússia, como o estado dos hospitais, ficaram mais evidentes.

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Segundo levantamento do portal The Moscow Times , não há, por exemplo, respiradores suficientes, mesmo nas áreas mais ricas, como Moscou e São Petersburgo. Nas regiões orientais, os governos locais têm dificuldade de conseguir equipamentos de proteção, como máscaras e luvas. Não são poucos os hospitais distribuindo itens de mergulho, como máscaras e snorkels , aos seus médicos e enfermeiros.

Além disso, a imagem de Putin já estava arranhada antes da pandemia por causa de um referendo constitucional que pode abrir as portas para que ele permaneça no poder até 2036. A votação estava prevista para o dia 22 de abril, mas agora não tem data para acontecer. O atual mandato de Putin termina em 2024, e, pelas regras da Constituição em vigor, ele não poderia mais se candidatar.

— Ele perdeu o timing para a votação. Além disso, outro grande projeto político que foi afetado foi a celebração dos 75 anos do fim da Segunda Guerra Mundial . No seu discurso de fim de ano, Putin disse que seria o maior evento do ano, mas foi adiado. Ele perdeu algumas  de suas ferramentas de relações públicas por algum tempo — afirmou ao GLOBO o jornalista russo Leonid Ragozin .

O desfile comemorativo, com a presença de líderes mundiais, estava previsto para 9 de maio.

Apesar da mídia amplamente favorável, boa parte dos russos já não esconde a insatisfação. Uma pesquisa divulgada na semana passada pelo instituto VTsIOM revela que o nível de confiança no trabalho do presidente chegou ao nível mais baixo em 14 anos: 28,3% dos entrevistados disseram que ele é o político mais confiável do país, dois pontos percentuais a menos do que em dezembro. A aprovação se situa em torno de 60% . Pode parecer um bom número para padrões mundiais, mas está bem abaixo dos 80% que ele ostentava em 2014, na época da anexação da Crimeia.

— Acho que ele está mais vulnerável do que estava. É uma grande crise e penso que todos os governos do mundo serão julgados pela forma como lidaram com a Covid-19. Apesar das medidas terem sido tomadas de forma avançada, são mais de 100 mil infectados. Em Moscou, todos têm amigos ou parentes que estão infectados — afirmou Leonid Ragozin .

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Na mesma linha, Andrei Kolesnikov , chefe do programa de Política Interna e Instituições Políticas Russas no Centro Carnegie de Moscou, diz que os movimentos políticos de Putin, especialmente os relacionados ao referendo, abalaram boa parte de sua base de apoiadores. O coronavírus, no caso, apenas ressaltou alguns questionamentos.

"Até a ideia de um 'Putin eterno' não provocou muito impacto: as pessoas esperavam isso dele, não há alternativa a ele. As pessoas estão, por outro lado, cansadas de não terem uma alternativa", afirmou Kolesnikov, em artigo no site do Carnegie Center.

Ele também ressalta que, antes das ordens para ficar em casa terem sido emitidas, pesquisas mostravam uma população dividida sobre o referendo constitucional, com uma pequena vantagem para o "sim", mas um número extremamente alto de indecisos.

Reação

Um aspecto que chamou a atenção de analistas e até de boa parte dos russos foi a maneira quase passiva com que o presidente lidou com a crise em seus primeiros momentos, delegando funções a seus subordinados, que também eram os responsáveis por emitir as ordens e recomendações.

Mark Galeotti , autor de "We need to talk about Putin" ("Precisamos falar sobre Putin", ainda sem tradução para o português), chama a atenção para o fato de o presidente agir de forma "cada vez menos presidencial" diante do público, o que poderia levar a uma crise de legitimidade de seu governo.

"Putin violou um contrato fundamental com governadores e burocratas, a administração intermediária do Estado, que são as pessoas que realmente mantêm o sistema funcionando", disse Galeotti, em entrevista ao New York Times. Para ele, essa quebra diz respeito ao fato de o presidente delegar funções e responsabilidades, sem abrir mão do próprio poder.

No mês passado, Putin começou a tentar mudar a imagem de passividade. Ações como a concessão de linhas de crédito, auxílio financeiro e o pagamento de salários de funcionários pequenos e médios negócios, além de discursos quase diários e videoconferências transmitidas na íntegra na imprensa, o colocaram diante dos russos como um líder forte, uma imagem que tenta imprimir a todo custo.

— Agora sabemos muito mais sobre o coronavírus do que há um mês, então podemos desenvolver projeções, estratégias e ações táticas de forma mais precisa — disse Putin em teleconferência na semana passada, quando estendeu as medidas de isolamento até o dia 11 de maio. — Precisamos estar atentos ao fato de que haverá um processo complexo pela frente, e que não será tão rápido como gostaríamos.

Apesar da queda de popularidade, não há sinais de um movimento forte contra o presidente. Mas são cada vez mais comuns comentários negativos sobre o governo em redes sociais, vindos de setores que são a sua base de apoio, como empresários que foram obrigados a fechar seus negócios e trabalhadores que perderam seus empregos.

Protestos, por enquanto, apenas virtuais.