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Pandemia expõe perda de influência e poder dos EUA no cenário global

A Covid-19 está abalando as crenças sobre o excepcionalismo americano, na primeira crise global em mais de um século em que ninguém está buscando a liderança de Washington
Presidente Donald Trump durante coletiva de imprensa na Casa Branca em 21 de abril Foto: MANDEL NGAN / AFP
Presidente Donald Trump durante coletiva de imprensa na Casa Branca em 21 de abril Foto: MANDEL NGAN / AFP

BERLIM — Com as imagens dos hospitais sobrecarregados nos EUA e longas filas de desempregados exibidas ao redor do mundo, as pessoas no lado europeu do Atlântico estão olhando para a nação mais rica e poderosa do mundo incrédulas.

— Quando as pessoas veem essas imagens de Nova York elas dizem “como isso pode acontecer? Como isso é possível? — disse Henrik Enderlein , presidente da Escola Hertie, em Berlim, uma universidade focada em políticas públicas. — Estamos chocados. Veja as filas de desempregados.

— Eu sinto uma tristeza desesperadora — afirmou Timothy Garton Ash , professor de História da Europa na Universidade Oxford e um atlanticista fervoroso.

A pandemia que varre o globo fez mais do que deixar vítimas e acabar com o sustento de famílias de Nova Délhi a Nova York. Ela está movimentando definições sobre o excepcionalismo dos EUA , o papel especial que os EUA desempenharam por décadas depois da Segunda Guerra Mundial, com o alcance de seus valores e poder se espalhando e fazendo do país um líder global e exemplo para o mundo.

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Hoje, os EUA lideram de uma maneira diferente: mais de 860 mil americanos foram diagnosticados com a Covid-19 e quase 50 mil pessoas perderam a vida, mais do que em qualquer outro lugar do mundo.

'Excepcionalmente ruim'

Com a calamidade se espalhando, o presidente Donald Trump e os governadores não estão apenas discutindo sobre o que fazer, mas também sobre quem tem autoridade para tomar as decisões. Trump incitou protestos contra as medidas de segurança defendidas por cientistas, deu informações incorretas sobre o vírus e a resposta do governo quase que diariamente e, essa semana, usou o coronavírus para justificar a suspensão de novos vistos de residência (“green card”) para pessoas que querem viver nos EUA.

— Os EUA não estão agindo mal; eles estão agindo de uma forma excepcionalmente ruim — diz Dominique Moïsi , cientista política e assessora sênior no Instituto Montagne, em Paris.

A pandemia expôs as forças e fraquezas de praticamente todas as sociedades, afirmou Moïsi. Ela demonstrou a força de, e a supressão de informações por, um Estado autoritário chinês que impôs uma quarentena na cidade de Wuhan. Mostrou o valor da confiança pública e espírito de coletividade da Alemanha, mesmo que tenha ressaltado a relutância do país para dar o passo adiante e liderar a Europa.

E nos EUA, expôs duas grandes fraquezas que, aos olhos dos europeus, estão interligadas: a liderança errática de Trump, que desvalorizou o conhecimento e por vezes se recusou a seguir os conselhos de seus assessores científicos , além da ausência de um sistema de saúde robusto e de uma rede de segurança social.

— Os EUA se prepararam para o tipo errado de guerra — disse Moïsi. — Se prepararam para um novo 11 de setembro , mas ao invés disso o vírus veio. Isso levanta uma questão, os EUA se tornaram o tipo errado de poder com o tipo errado de prioridades?

Novas lideranças

Desde a chegada de Trump à Casa Branca e de tornar “ América Primeiro ” no mantra de seu governo, os europeus se acostumaram à disposição casual dele para arriscar alianças de décadas e para rasgar acordos internacionais. Logo no início do mandato, disse que a Otan era “obsoleta” e retirou os EUA do Acordo de Paris para o clima, além do acordo sobre o programa nuclear iraniano .

Talvez seja essa a primeira crise em mais de um século em que o mundo não está buscando os EUA em busca de liderança.

Em Berlim, o ministro das Relações Exteriores alemão, Heiko Maas , foi nessa linha.

A China tomou “medidas muito autoritárias, enquanto nos EUA o vírus foi menosprezado por muito tempo”, disse Maas à revista Der Spiegel. “São dois extremos, e nenhum deles pode ser o modelo para a Europa.

Os EUA certa vez contaram uma história de esperança, não apenas para os americanos. Alemães da antiga Alemanha Ocidental, como Maas, que cresceram na linha de frente da Guerra Fria, sabiam de cor essa história e, como muitos ao redor do mundo, acreditavam nela.

Três décadas depois, a história dos EUA está com problemas.

O país que ajudou a derrotar o fascismo na Europa há 75 anos e defendeu a democracia no continente pelas décadas seguintes está fazendo um péssimo trabalho ao defender seus próprios cidadãos, pior do que em muitas autocracias e democracias.

Mas existe uma ironia especial: os EUA e a Coreia do Sul, ambos produtos da liderança americana no pós-guerra, se tornaram exemplos poderosos das melhores práticas para enfrentar o coronavírus.

— Não se trata apenas de uma ausência de liderança global, não há uma liderança nacional ou federal nos EUA — afirmou Ricardo Hausmann, diretor do Laboratório do Crescimento no Centro Harvard de Desenvolvimento Internacional. — De certa forma, é o fracasso da liderança dos EUA nos EUA.

Claro, vale notar que algumas nações europeias enfrentam problemas causados pelo vírus, com o número de mortos pela Covid-19 muito mais alto, em termos de percentual da população, na Itália, Espanha e França do que nos EUA. Mas eles foram afetados antes e tiveram menos tempo para se preparar e reagir.

Ações diferentes

O contraste entre as respostas de EUA  e Alemanha ao coronavírus é particularmente chocante. Enquanto a chanceler Angela Merkel foi criticada no passado por não exercer uma liderança vigorosa o bastante na Europa, a Alemanha está sendo elogiada por adotar uma resposta técnica à pandemia , ao menos de acordo com os padrões ocidentais. Isso ocorre graças a um robusto sistema de saúde pública, mas também pela estratégia de testagem em massa e uma liderança política efetiva e confiável. Merkel fez o que Trump deixou de fazer. Ela foi clara e honesta sobre os riscos ao falar com os eleitores e direta em sua resposta. Trouxe pata perto os 16 governadores do país. Formada em física e com extenso currículo acadêmico, seguiu as recomendações científicas e buscou adotar as melhores práticas sanitárias de outras nações.

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Há pouco tempo, Merkel era considerada uma liderança em decadência, tendo anunciado que seria seu último mandato. Hoje, sua aprovação está em 80%.

— Ela possui a mente de um cientista e o coração de uma filha de pastor — pontua Garton Ash. Alguns, contudo, fazem a ressalva de que a história definitiva de como os países se saíram na pandemia ainda está longe de ser finalizada.

Essa crise é um tipo especial de teste de estresse para os sistemas políticos, diz Garton Ash, um professor de história. O equilíbrio de poder militar não foi alterado. Os EUA seguem como a maior economia do mundo. E não ficou muito claro qual região do mundo estaria mais preparada para dar início ao crescimento depois de uma dura recessão.

— Todas as economias vão enfrentar um teste terrível — disse ele. — Ninguém sabe quem sairá mais forte ao final.

Mudanças históricas

Essa é uma outra carta surpresa a curto prazo, Moïsi lembrou. Os EUA vão às urnas em novembro . Isso, e os dias que se seguirão à mais grave crise econômica desde os anos 1930, podem mudar os rumos da história.

Da Grande Depressão nasceu o “ New Deal ”. Talvez o coronavírus leve os EUA a adotar uma rede de segurança de saúde mais forte, e a desenvolver um consenso sobre a maior acessibilidade tratamentos de saúde, sugeriu Moïsi.

— Os sistemas democráticos europeus não são apenas mais humanos, eles nos deixam mais preparados para lidar com uma crise desse tipo, mais do que o sistema capitalista brutal dos EUA — opinou Moïsi.

A crise atual, alguns temem, pode agir como um acelerador histórico, acentuando o declínio de influência dos EUA  e da Europa.

— Em 2021 vamos sair dessa crise e estaremos em 2030 — disse Moïsi. — Haverá mais Ásia no mundo e menos Ocidente.

Garton Ash afirma que os EUA deveriam levar a sério o alerta urgente de uma longa linha de impérios que caíram.

— Para um historiador isso não é novo, é o que acontece — afirmou. — É uma história familiar na história mundial, depois de um certo tempo o poder declina. Você acumula problemas e como você é um ator poderoso, pode levar essas disfuncionalidades por um longo tempo. Até que alguma coisa aconteça e você não consiga mais.