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Participação da oposição nas eleições da Venezuela marca fim da estratégia de Guaidó para derrubar Maduro

Mudança drástica põe em xeque futuro político do opositor, que não deixou claro se apoia ou não a decisão, e abre caminho para novas lideranças
Juan Guaidó (ao centro) durante protesto ao lado de funcionários de saúde, em abril deste ano Foto: LEONARDO FERNANDEZ VILORIA / Reuters
Juan Guaidó (ao centro) durante protesto ao lado de funcionários de saúde, em abril deste ano Foto: LEONARDO FERNANDEZ VILORIA / Reuters

O discurso na última terça-feira do líder do partido Vontade Popular (VP), Freddy Guevara , horas antes do anúncio de que a oposição venezuelana participará das eleições regionais de novembro, foi o primeiro sinal de uma mudança drástica de tom. Guevara, que ficou preso um mês e foi libertado como parte das negociações que acontecem no México entre a oposição e o governo —  que serão retomadas nesta sexta-feira — reconheceu que os objetivos anteriores da sigla liderada por Juan Guaidó e Leopoldo López, “o fim total do sistema e o colapso militar”, não são viáveis.

A virada representa o fim da estratégia de “fim da usurpação” adotada por Guaidó nos últimos três anos para tirar o chavismo do poder, e sustentada, política e financeiramente, sobretudo pelo então presidente americano, Donald Trump.

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Agora, o futuro político do próprio Guaidó está em jogo. Sem deixar clara sua posição pessoal em relação à decisão tomada em conjunto pelos quatro maiores partidos opositores da Venezuela, agora reagrupados na Plataforma Unitária, ele perde de vez o posto de líder da oposição, acreditam analistas .

Dois fatores foram cruciais para a mudança, explica Maryhen Jiménez, cientista política venezuelana da Universidade de Oxford, no Reino Unido: o fracasso interno da estratégia maximalista, que acabou fazendo com que a oposição se afastasse dos anseios de grande parte dos venezuelanos; e a mudança no panorama internacional, principalmente após o fim do governo Trump.

— Em nível doméstico, além das críticas de parte da oposição, como os veteranos Henrique Capriles e mais recentemente Henry Ramos Allup, há uma pressão de grupos sociais, econômicos e religiosos, que pediam uma política mais realista, mais conectada com a população — afirma. — Além disso, houve a mudança de governo nos EUA, cujo presidente sustentava o governo interino de Guaidó. Pelo menos no discurso, a política do Partido Democrata, de Joe Biden, é diferente.

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Após o anúncio formal, feito por Ramos Allup, ex-presidente da Assembleia Nacional e um veterano opositor de Nicolás Maduro, Guaidó postou uma série de tuítes ambíguos. Leopoldo López, hoje exilado na Espanha, nem sequer se manifestou.

“As condições para eleições livres e justas devem ser consolidadas. Os que decidiram participar e os que lutamos pela libertação e pela democracia, para sair da tragédia; na rua ou no México. Lutamos por condições para sair da ditadura”, escreveu Guaidó, sem deixar claro em que lado está.

Falta de conexão

Como presidente da Assembleia Nacional, Guaidó se declarou “presidente interino” da Venezuela no início de 2019, depois que os partidos opositores desconheceram a reeleição de Maduro em 2018. Ele chegou a ser reconhecido como tal por mais de 50 países, incluindo o Brasil. Mas, nos últimos meses, especialmente depois de perder seu mandato parlamentar, Guaidó perdeu credibilidade, interna e externamente.

— Desde janeiro estava claro que sua estratégia havia fracassado, mas Guaidó se mantinha no posto fictício de presidente interino, aproveitando-se da inércia política interna — diz Phil Gunson, consultor do International Crisis Group baseado em Caracas.

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Nesse ínterim, o ex-candidato presidencial Henrique Capriles avançou em sua estratégia de diálogo com o governo e conseguiu acordos que, paulatinamente, ampliaram o espaço opositor. A nomeação de dois reitores alinhados à oposição para o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) foi uma vitória dessa estratégia, ressalta Gunson.

Com o início das negociações no México, a pressão internacional por um diálogo aumentou, especialmente por parte da União Europeia.

— Depois disso, até o Vontade Popular, fundado por Leopoldo López e símbolo da oposição mais linha-dura, deu-se conta de que não haveria outra alternativa senão participar das eleições. Apesar disso, Guaidó e o próprio López mantêm uma postura ambígua — afirma o consultor do International Crisis Group. — Mas, se você não assina a estratégia de seu próprio partido, como pode continuar sendo líder?

Novos nomes

Agora, avaliam os especialistas, a oposição deve se reorganizar, tanto num diálogo interno dentro da Plataforma Unitária quanto buscando se reconectar com o eleitorado, incluindo parte do chavismo descontente.

— Fragmentada e com sua credibilidade questionada, a oposição precisa agora de uma nova saída, mas sem buscar outro messias — explica Jiménez. — As elites políticas têm uma visão a partir de Caracas, um grande erro, porque não se conectam com a realidade das comunidades.

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Com o vácuo de liderança, já surgem novos nomes no cenário opositor — e dentro do próprio chavismo dissidente. Um deles é Roberto Patiño, jovem político de apenas 32 anos e cofundador da ONG Caracas Mi Convive (Minha Convivência), com foco na redução e prevenção da violência. Filiado ao partido opositor Primeiro Justiça, Patiño vem percorrendo vários bairros da capital venezuelana nos últimos meses. O último foi Catia, antes considerado bastião do chavismo.

“A verdadeira mudança é a que surge das comunidades, das pessoas. É dali que estamos construindo a transformação do país”, escreveu no Twitter, após a visita.

O chavismo dissidente, por sua vez, agrupou-se dentro da Alternativa Popular Revolucionária (APR), sob o slogan “Sim, há alternativa”.

— Já nos cadastramos junto ao CNE e reservamos postos; os nomes podem mudar porque as discussões continuam. Esperávamos que o CNE prorrogasse ainda mais o período de inscrições  — disse na quarta-feira o secretário-geral do Pátria Para Todos (PPT), Rafael Uzcátegui, que faz parte dessa coalizão.