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Portugal marca 60 anos do início da guerra de independência de Angola dividido sobre passado colonial

Morte de militar mais condecorado durante confrontos reacendeu debate nacional sobre como a História do país deve ser abordada
Padrão dos Descobrimentos, monumento construído em Lisboa durante a ditadura, também é alvo de debates Foto: Pixabay
Padrão dos Descobrimentos, monumento construído em Lisboa durante a ditadura, também é alvo de debates Foto: Pixabay

LISBOA — Marcelino da Mata foi atingido diversas vezes e sobreviveu a 2.400 combates na chamada Guerra Colonial (1961-1974). A ferida reaberta após a sua morte no início de fevereiro, entretanto, está longe de cicatrizar e expõe o duelo político sobre a era colonialista de Portugal. Herói para uns, criminoso para outros, as homenagens em funeral e no Parlamento dividiram e fizeram a sociedade rever a relação com o passado, ao mesmo tempo em que debate a remoção de monumentos coloniais em Lisboa.

Para os portugueses, o conflito na África completa 60 anos nesta segunda-feira, data dos ataques a vilas e fazendas de colonos em Luanda. Por sua vez, as forças independentistas angolanas apontam como estopim os assaltos às prisões na capital, em fevereiro de 1961.

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Militar mais condecorado, Marcelino acumulou dez medalhas e reuniu altas patentes do Exército, além do presidente Marcelo Rebelo de Sousa, em seu funeral no mês passado. Morreu em Lisboa aos 80 anos, vítima da Covid-19. Nascido na Guiné-Bissau, lutou contra as forças de independência de seu próprio país e foi proibido de retornar. Era fundador dos Comandos, tropa de elite portuguesa adepta de métodos cruéis.

— Apanhamos o gajo, despimos a farda e fizemos a mesma coisa (que o inimigo teria feito com um de seus soldados). Cortamos a piça (pênis) e metemos na boca — revelou o próprio Marcelino no documentário "Anos de guerra - Guiné 1963-1974", de José Barahona.

Com aprovação das siglas à direita e da maioria do Partido Socialista (PS), de centro-esquerda e liderado pelo primeiro-ministro António Costa, o voto de pesar aprovado no Parlamento foi justificado no texto: “Marcelino da Mata destacou-se pela coragem e bravura individual, sem se ter ferido alguma vez com gravidade".

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Disputas sobre a História

O Partido do Centro Democrático Social-Partido Popular (CDS-PP) reivindicou luto nacional e um funeral de Estado, mas sem êxito. Foi o bastante para levar o ativista luso-senegalês Mamadou Ba, dirigente da organização SOS Racismo, a escrever no Twitter: “Marcelino da Mata é um criminoso de guerra que não merece respeito nenhum".

O CDS exigiu a saída de Mamadou do grupo de trabalho do governo para a prevenção e o combate ao racismo e à discriminação. Mais longe foi o Chega!, de extrema direita. Seu líder, o populista André Ventura, propôs o que chamou de “Lei Mamadou Ba”, projeto de retirada da cidadania portuguesa daqueles que têm dupla nacionalidade e ofendam a História de Portugal.

— Chamar de criminoso quem participou da Guerra Colonial é apelidar uma geração inteira de racista, criminosa e bandida. Meu pai combateu por ser determinado pelo governo. Meu pai não é criminoso, seus amigos não são criminosos — disse Ventura em entrevista a jornalistas estrangeiros.

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Em entrevista ao Público, o primeiro-ministro António Costa afirmou: “Nem André Ventura nem Mamadou Ba representam aquilo que é o sentimento da generalidade do país. Felizmente".

Uma petição com 31 mil assinaturas pede a deportação de Mamadou. Outros saíram em defesa do ativista. Em sua coluna no GLOBO , o escritor José Eduardo Agualusa concluiu: “Ambos se distinguem pela coragem. Marcelino usou a bravura para semear violência e dor. Mamadou usa-a para combater o ódio. Eu escolho admirar Mamadou".

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Táticas em xeque

Ex-combatente na Guiné-Bissau, Valter Diogo disse ao GLOBO que os oficiais não admiravam as táticas de Marcelino. Militante do PS, Diogo tem 74 anos e servia em Farim quando Marcelino esteve no quartel da cidade da Guiné-Bissau.

— Ele era uma pessoa difícil de abordar e não lhe tínhamos nenhuma simpatia. Não apreciávamos a crueldade. Não era bem querido pela tropa. Contestávamos a guerra enquanto ele era útil ao Exército. Ia para a mata com o seu grupo e não deixava ninguém vivo. Era cruel, não era herói — contou Diogo.

Com o fim da ditadura do Estado Novo após a Revolução dos Cravos, em 25 de abril de 1974, Marcelino foi torturado pelo Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado (MRPP) e se exilou na Espanha. Logo no início da democratização, Portugal reviu os símbolos dos anos de chumbo e a Ponte Salazar, hoje ícone lisboeta, mudou de nome para 25 de Abril. Mas com o passado colonial, nada foi feito.

— Portugal nunca quis discutir o colonialismo e preferiu minimizá-lo para evitar problemas — disse Rui Diogo, doutor em antropologia, professor da Universidade de Howard, em Washington, e filho de Valter Diogo.

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Rui publicou este ano o livro “Human nature and delusions” (Natureza humana e ilusões, sem tradução no Brasil), que aborda o colonialismo, o racismo e a eugenia. Ele defende que o colonialismo europeu matou, ao longo dos séculos, mais que o Holocausto, causa do extermínio de seis milhões de judeus na Segunda Guerra.

— Falavam que o colonialismo português era brando e virou tabu dizer que era mau. O colonialismo português foi sádico. A intenção era matar ou escravizar. Quando entravam no navio, os escravos sabiam que de lá não sairiam. Era um campo de concentração — comparou Rui.

Questionamentos

Recentemente, a sociedade portuguesa passou a questionar com mais veemência o passado colonialista. Ascenso Simões, um dos três entre 108 deputados do PS que votaram contra o voto de pesar a Marcelino, defendeu em artigo no jornal Público que o Padrão dos Descobrimentos, monumento lisboeta inaugurado na ditadura, “num país respeitável deveria ter sido destruído”.

— É ridículo. Colonização e o império fazem parte da História de Portugal. Tiveram momentos maus e bons — pondera Ventura.

Em junho de 2020, a estátua do padre Antônio Vieira, em Lisboa, foi pichada com a palavra “Descoloniza”. A obra chegou a ser vigiada por membros de uma organização de ultradireita, que a protegiam dos manifestantes do Coletivo Descolonizando. O grupo faz em sua página uma releitura do colonialismo benevolente e das ações do padre jesuíta e missionário no Brasil: “Defendeu a escravatura sistemática de africanos e a conversão forçada de indígenas sul-americanos".

Projeto proposto pela prefeitura de Lisboa em 2017, o Museu da Descoberta não foi à frente. Centenas de pessoas subscreveram o texto “Não a um museu contra nós!”, classificando a empreitada como “narrativa de glorificação da empresa colonial”. O nome teria mudado para “A Viagem”, mas a obra estacionou.

Uma das subscritoras foi a deputada do Bloco de Esquerda Beatriz Gomes Dias, presidente da Associação de Afrodescendentes (Djass). Nascida no Senegal, teve aprovado no Orçamento Participativo de Lisboa o projeto do Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas, em fase de construção.

Do outro lado, a Nova Portugalidade (NP) obteve da prefeitura de Lisboa um sinal pela manutenção dos brasões florais da Praça do Império. Erguidas na ditadura, as obras de jardinagem simbolizam as ex-colônias, e a preservação do conjunto não estaria prevista na remodelação da área. A possibilidade de exclusão originou petição da NP, que divulga em seu site que o Brasil não conquistou a independência, mas teria sido injustamente expulso de Portugal.