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Primavera Árabe não teve o resultado previsto há 10 anos, mas mostrou que mudança é possível

Oriente Médio e Norte da África são menos livres, mas revoltas enterraram o medo e mostraram que árabes ainda querem democracia e dignidade
Mulher líbia carrega a foto de um parente após fim do regime de 42 anos de Muamar Kadafi Foto: Suhaib Salem / REUTERS / 23-10-2011
Mulher líbia carrega a foto de um parente após fim do regime de 42 anos de Muamar Kadafi Foto: Suhaib Salem / REUTERS / 23-10-2011

DUBAI — No início de 2011, o mundo árabe vivenciou uma onda de protestos contra a corrupção e reivindicações de melhores condições de vida. A mídia internacional imediatamente chamou o movimento de Primavera Árabe. A expressão talvez tenha influenciado as expectativas excessivas que despertou.

Uma década e meio milhão de mortos depois, a região, com a exceção da Tunísia, se encontra hoje em piores condições e com liberdades mais limitadas. Ainda assim, a queda de quatro ditadores derrubou o muro do medo e abalou a ideia de que a democracia é incompatível com a cultura árabe. O status quo já não mais pode ser considerado garantido.

— Dez anos não é um prazo suficiente para desenvolver grandes mudanças estruturais. As revoltas não acabaram. Elas foram suprimidas, mas ocorrerão novamente. Talvez mais violentas, talvez não. O que está claro é que não há como voltar à ordem política de antes de 2011 — resume o cientista político Kawa Hassan, vice-presidente do programa para Oriente Médio e Norte da África do Instituto EastWest, organização sem fins lucrativos que promove a resolução de conflitos.

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O termo  Primavera Árabe foi cunhado por comentaristas conservadores para se referir às fagulhas democráticas de 2005 no Oriente Médio.O professor Marc Lynch, da Universidade George Washington, recuperou a expressão em um artigo na revista Política Externa sobre os protestos aparentemente desconexos que seis anos depois se espalharam da Tunísia ao Kuwait, passando por Argélia, Egito e Jordânia, chegando mais tarde à Líbia, Síria, Bahrein e Iêmen.

O tom era inspirador e positivo, só que, nos meses seguintes, a contrarrevolução financiada pelas monarquias do petróleo acabaria com os sonhos de mudança.

— Prefiro chamá-las de revoltas da dignidade porque milhões de pessoas tomaram as ruas pedindo uma cidadania digna — afirmou Hassan em uma conversa por telefone.

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Contrarrevolução

Os protestos populares e pacíficos, chamados pelos manifestantes de intifadas (levante) ou zaura (revolução), conseguiram derrubar os autocratas em Tunísia, Egito, Líbia e Iêmen. Somente na Tunísia, no entanto, se consolidou uma frágil democracia.

No Egito, a eleição de um presidente da Irmandade Muçulmana, Mohamed Morsi, teve como resposta um golpe militar que aumentou a repressão. A Líbia e o Iêmen mergulharam em guerras civis, como aconteceu na Síria, onde o ditador Bashar al-Assad até agora se mantém, com muito sangue e fogo. Nesses países, o Estado e a sociedade foram destruídos, pelo menos meio milhão de pessoas morreram e 16 milhões foram deslocadas de suas casas.

— Os manifestantes ficaram encurralados entre Estados autoritários e atores não estatais autoritários. Os poderes contrarrevolucionários atuaram até mesmo em países onde não houve revolta — afirmou Hassan.

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Ainda assim, ele está convencido de que “o fator medo desapareceu para sempre e nenhum poder na região pode ficar tranquilo”. De acordo com o cientista político, “as sociedades ainda insistem em desafiar a ordem política, como foi visto em 2019 no Iraque, no Líbano e ainda, mais surpreendentemente, na Argélia e até no Sudão, onde derrubaram [Omar al] Bashir e iniciaram uma frágil transição democrática ”.

Haizam Amirah Fernández, pesquisador do Instituto Real Elcano, afirma que essa segunda onda de protestos enquadra a inquietação árabe nos movimentos de descontentamento com o establishment que abalam outros países, como Chile e a Tailândia:

— Se o mundo árabe ficou de fora das transições democráticas ocorridas na América Latina, Leste Asiático e Leste Europeu na década de 1980, 2011 deixou clara a interconexão entre diferentes áreas do mundo devido à situação econômica e social após a crise financeira— disse a El País, referindo a mobilizações como os “indignados” na Espanha e o Occupy Wall Street, nos Estados Unidos.

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Por enquanto, a repressão conseguiu suprimir os protestos, mas Hassan crê que, "apesar da resiliência dos regimes autoritários, as demandas de uma cidadania digna não vão desaparecer".

— As causas que desencadearam os distúrbios, como a demanda por melhores serviços e o Estado de Direito, não só ainda existem, como se agravaram — ele destaca.

Isso se reflete em uma recente pesquisa YouGov para o jornal The Guardian, segundo a qual os sentimentos de desesperança e privação de direitos que alimentaram aqueles protestos continuaram a aumentar. A maioria dos consultados em nove países árabes declarou que suas condições de vida pioraram desde a imolação do jovem vendedor de frutas tunisiano Mohamed Bouazizi, incidente que marcou o estopim dos protestos e completa dez anos nesta segunda-feira.

Como era de se esperar, o descontentamento é maior onde houve guerras civis e intervenções estrangeiras. 75% dos sírios, 73% dos iemenitas e 60% dos líbios dizem que estão pior do que antes da Primavera. No Egito, Iraque e Argélia, por mais que menos da metade dos entrevistados considere que sua situação tenha piorado, apenas um quarto diz que está melhor.

— As reformas foram ultrajantes e a Covid-19 exacerbou os problemas socioeconômicos — avaliou Hassan.

Para Amirá Fernández, a região é submetida a um experimento que testa a resiliência das sociedades árabes:

— Apesar das diferenças entre os países, as demandas econômicas e políticas têm sido respondidas com medidas de segurança, pulso firme e repressão — afirmou, ressaltando que isso não se resume aos regimes em questão. — Até no exterior, continua-se a favorecer de forma descarada o modelo de estabilidade baseado no autoritarismo e na supressão de liberdades, ao invés de experimentos com qualquer sistema alternativo.

O futuro

As petromonarquias, que conseguiram comprar aquiescência e paz social com os benefícios do petróleo e do gás, optaram pelo desenvolvimento econômico como substituto da democracia. Cedem alguma coisa na área social, enquanto se restringem as liberdades políticas. Nas autocracias sem petrodólares, não há sequer um alento. Até quando a panela de pressão vai aguentar?

— Não está claro para onde estamos indo. Os regimes atuais são ainda mais repressivos e mais dispostos a usar a força. Eles vão lutar até a morte para manter o poder — diz o analista do EastWest Institute.

Amirah Fernández, por sua vez, refere-se à realidade demográfica como o “maior determinante das sociedades árabes”. Com diferenças pontuais, dois terços de seus 420 milhões de habitantes têm menos de 30 anos. Muitos eram jovens demais em 2011, mas “viram o que pode ser feito apesar do caos e das interferências subsequentes”.

A pesquisa do YouGov, na verdade, detecta uma diferença geracional. Os mais jovens entre os adultos pesquisados (18-24 anos) são os que menos lamentam as revoltas, enquanto seus pais são mais pessimistas e consideram que as novas gerações enfrentam um futuro mais difícil do que o cenário anterior às Primaveras.

— É muito cedo para dizer que a Primavera Árabe fracassou. Precisamos permitir que a juventude tenha o seu tempo, e este tempo chegará — disse Lina Khatib, diretora do programa para o mundo árabe do centro de estudos britânico Chatham House, em uma conferência recente.

Amirah Fernández concorda:

— É um processo longo, com muitos altos e baixos, que vai trazer muitas decepções. Nenhuma revolução transformadora no mundo se concluiu em poucos anos e sem reação.