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Primeiras mulheres negras no Parlamento português querem discutir racismo e passado colonial

Atacadas durante a campanha e até na festa da vitória, deputadas querem levar pautas sociais ao Legislativo, sem esquecer de seu passado de dificuldades e até fuga de conflitos armados
Joacine Katar Moreira, do Livre, durante sessão no Parlamento, em Lisboa Foto: Pedro Fiúza / NurPhoto/30-10-2019
Joacine Katar Moreira, do Livre, durante sessão no Parlamento, em Lisboa Foto: Pedro Fiúza / NurPhoto/30-10-2019

LISBOA — Agarrada ao filho Artur, Romualda Fernandes lembra de ter alcançado a margem do rio e fugido da morte numa canoa. Enquanto deslizavam silenciosamente pelo espelho d’água, ouviam os estrondos do conflito armado no esconderijo do qual escaparam na Guiné-Bissau. Seu marido, o médico Domingos Fernandes Gomes, havia recém-fundado o movimento de resistência Bafatá, de oposição a João Bernardo "Nino" Vieira, então presidente daquele país. Seis amigos do casal haviam sido executados em meados da década de 1980. Foi em memória deles que Romualda, uma das três deputadas negras de origem guineense eleitas juntas e de maneira inédita ao Parlamento de Portugal, lutou para sobreviver até conseguir ocupar uma das cadeiras da bancada do Partido Socialista (PS).

— Estamos colhendo os frutos de uma luta de décadas na Guiné-Bissau. Ainda bem que vivi para ver isto acontecer. E para honrar aqueles que combateram, mas não estão mais conosco — disse Romualda.

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Além de Romualda, Joacine Katar Moreira , do Livre, nasceu na Guiné-Bissau e chegou a Portugal com 8 anos. Beatriz Gomes Dias , do Bloco de Esquerda (BE), é de Dakar, no Senegal, mas tem ascendência guineense. As suas histórias agora estão entrelaçadas no Parlamento. Em dois meses de trabalho, foram responsáveis por levarem ao plenário discussões sobre discriminação, igualdade de gêneros, inclusão social de minorias e ampliação dos direitos dos imigrantes.

— É necessário fazer em Portugal o combate à discriminação, pela igualdade de gênero e contra a exclusão social. Não somente dos afrodescendentes, mas de todos que têm vida indigna, principalmente imigrantes — explicou Romualda.

Jurista

Com 65 anos e duas décadas de militância no PS, Romualda é jurista especializada em Direito Internacional aplicado às Nacionalidades, Condição de Estrangeiros e Direito Humanitário. Atuou como consultora da Organização Internacional para as Migrações (OIM) e integra o conselho diretor do Alto Comissariado para as Migrações. Trabalhou em órgãos do governo e acompanha desde a década de 1990 a frequência de emigrantes brasileiros em Portugal

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Romualda Fernandes, uma das três deputadas negras eleitas no Parlamento de Portugal, escapou de conflito armado em Guiné-Bissau Foto: Agência O Globo
Romualda Fernandes, uma das três deputadas negras eleitas no Parlamento de Portugal, escapou de conflito armado em Guiné-Bissau Foto: Agência O Globo

— Eu percebia na virada dos anos 1990 para 2000 que havia grande discriminação na chegada de brasileiros. Está diminuindo bastante, e é isto que queremos. Levamos este debate para o centro das decisões para que ninguém que procure Portugal para realizar seu sonho sinta-se impedido de fazê-lo — disse Romualda.

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A deputada socialista é membro da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias e trabalhou no parecer sobre o Projeto de Lei do Partido Comunista Português (PCP). O texto altera a Lei da Nacionalidade e concede cidadania automática a todos os filhos de estrangeiros nascidos em Portugal sem exigência de prazo de residência dos pais, que hoje é de dois anos. É a concessão pelo direito ao solo, ou jus soli . O projeto foi aprovado no plenário, está em análise em comissão e voltará à votação global.

Joacine também apresentou alterações à Lei da Nacionalidade, mas seu projeto foi rejeitado. Quando chegou a Portugal, ela foi direto para um colégio interno de freiras espanholas, as Dominicanas da Anunciata. Só despertou de vez para a africanidade em Alverca, nos arredores de Lisboa, onde frequentou um bairro social de guineenses, cabo-verdianos e angolanos. O choque com a realidade de desemprego e dinheiro escasso despertou a futura historiadora para questões coloniais e de desigualdade social que viria a combater e a sentir na própria pele. Além de ser negra, mulher e imigrante, sofre de gagueira severa e é atacada por isto.

— Nenhum país desenvolvido mantém seus cidadãos no limiar da sobrevivência — defende Joacine, fundadora do Instituto da Mulher Negra em Portugal (Inmune).

Primeira mulher negra candidata ao cargo de primeira-ministra e eleita deputada, Joacine, de 37 anos,  propôs a trasladação do corpo de Aristides de Sousa Mendes para o Panteão. O ex-cônsul de Bordeaux foi o responsável por emitir milhares de vistos a refugiados de origem judia na 2ª Guerra Mundial, desafiando a ditadura do Estado Novo em Portugal. Cerca de 30 mil fugiram do Holocausto graças a ele.

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Mas a atuação de Joacine nos primeiros meses de Parlamento tem sido ofuscada por uma sucessão de episódios polêmicos. Ela perdeu o prazo para entregar o projeto de alteração da Lei da Nacionalidade, que só foi para votação devido ao perdão excepcional da presidência da Casa. Brigou com a imprensa, encerrou a conta no Twitter após ser alvo de ódio virtual e entrou em rota de colisão com o seu partido por se abster numa votação de condenação à violenta intervenção de Israel em Gaza. O Livre defende o reconhecimento do Estado da Palestina.

— Ganhei as eleições, sozinha, e a direção quer ensinar-me a ser política — disse ao jornal Observador.

De perfil mais discreto, Beatriz Gomes Dias, do Bloco de Esquerda (BE), tem 48 anos, é professora de biologia, membro da organização SOS Racismo e fundadora da Associação de Afrodescendentes (Djass). Ela defende a construção de um memorial em honra das pessoas escravizadas pelo império português. A Djass levou a proposta ao Orçamento Participativo de Lisboa, saiu vencedora e a prefeitura incluiu o projeto nas despesas de orçamento.

Beatriz Gomes Dias, do Bloco de Esquerda (BE) Foto: Reprodução
Beatriz Gomes Dias, do Bloco de Esquerda (BE) Foto: Reprodução

Beatriz fez a defesa do projeto do BE sobre a alteração da Lei da Nacionalidade. Neste texto, o direito ao solo retroage a 1981 e extingue o impedimento à aquisição a quem tenha sido condenado à pena de prisão igual ou superior a três anos. Mas o partido decidiu tirá-lo de votação quando soube que seria reprovado. O texto será analisado em comissão e deverá voltar a plenário em breve “para corrigir uma injustiça histórica”, como diz a deputada:

— Quem nasce em Portugal é português.

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Mestre em comunicação de ciência, ela chegou a Portugal há 44 anos, há 12 milita no BE e foi a primeira candidata negra apresentada pelo partido em uma posição elegível.

Ativista do Movimento em Defesa da Escola Pública, considera prioritário o combate ao racismo nas salas de aula. Para a deputada, o eurocentrismo e o ponto de vista colonizador dominam o método de ensino nos livros escolares de Portugal. Ela defende uma educação inclusiva.

— Este país não tem sido para todas, nem para toda a gente, mas tem que ser para todos e todas. Para os milhares de africanos e afrodescendentes que acordam cedo para ir limpar as casas do centro da cidade onde não moram — disse.