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Processos abertos contra Morales e dirigentes do MAS por governo interino são desafio para Arce

Após ser eleito, ex-ministro diz esperar que a Justiça atue com independência e afirmou que ex-presidente não terá cargo no futuro governo
Apoiadores do MAS celebram vitória de Luis Arce, em El Alto, na Bolívia Foto: RONALDO SCHEMIDT / AFP
Apoiadores do MAS celebram vitória de Luis Arce, em El Alto, na Bolívia Foto: RONALDO SCHEMIDT / AFP

Fraude nas eleições de 2019, terrorismo , rebelião e até estupro. Nos meses que precederam as eleições do último domingo na Bolívia, o ex-presidente Evo Morales foi acusado de inúmeros crimes pelo governo interino de Jeanine Áñez, num total de mais de 30 processos. Seu aliado e ex-ministro da Economia Luis Arce, vencedor do pleito, responde a cinco processos, no que a organização Human Rights Watch chamou de perseguição judicial contra dirigentes do antigo governo e do seu partido, o Movimento ao Socialismo (MAS). Os casos representam um desafio para o presidente eleito, que, segundo os números mais recentes da apuração, teve 53% dos votos, 20 pontos percentuais a mais que o segundo colocado, o ex-presidente Carlos Mesa.

Em entrevista à agência Reuters nesta terça-feira, Arce disse que espera que a Justiça aja com independência nos processos.

— O direito ao devido processo legal não foi respeitado em muitos casos contra ele — disse Arce, referindo-se a Morales. — Lamento que a política tenha sido judicializada, a direita judicializou a política.

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Arce sempre defendeu o direito de Morales de voltar ao país, mas deixou claro, na entrevista à Reuters, que o ex-presidente não participará diretamente do seu governo.

— Ele não terá qualquer papel em nosso governo — afirmou. — Ele pode retornar ao país quando quiser, porque ele é boliviano. Mas no governo sou eu quem tenho que decidir quem forma parte da administração e quem não forma.

Em seu exílio em Buenos Aires, onde se refugiou depois de renunciar sob pressão militar em novembro do ano passado, Morales disse na segunda-feira que “mais cedo ou mais tarde” retornará à Bolívia. O ex-presidente afirmou que os processos instaurados contra ele na Bolívia cairão e que o ministro de Governo de Áñez, Arturo Murillo, promotor da maioria das denúncias e afastado na segunda-feira, estaria prestes a fugir do país.

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Nesta terça-feira, no entanto, Murillo foi novamente empossado por Áñez, apesar de o Congresso, controlado pelo MAS, ter pedido seu afastamento por não comparecer a uma convocação para informar sobre o suposto superfaturamento na compra de equipamentos antimotim.

Um dia antes da eleição de domingo, Murillo afirmou que Morales não entraria na Bolívia mesmo que o MAS ganhasse. Segundo ele, o ex-presidente “tem medo da censura do povo” pela suposta fraude nas eleições de 2019, apontada pela oposição e em um relatório da OEA posteriormente contestado por especialistas em estatísticas eleitorais. Na semana passada, o ex-diretor da Unidade de Investigações Financeiras (UIF), Ramiro Rivas, denunciou pressões de Murillo para investigar Arce, além de outros candidatos e dois jornalistas.

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Nesta terça, Arce disse à Folha de S. Paulo que irá enfrentar os processos contra ele “com calma e confiança de que a Justiça agirá de modo correto”.

Para Fábio Borges, professor da Universidade Federal da Integração Latino-americana (Unila), o governo Àñez tentou usar todas as armas possíveis para criminalizar o ex-presidente e seu entorno. Ao todo, 150 pessoas, entre apoiadores e ex-membros do governo, foram denunciadas. Alguns deles ficaram presos por meses, mesmo antes da conclusão das investigações.

— Tentaram criminalizar Evo a qualquer custo para assim legitimar o governo interino. Mas muitas das denúncias não se provaram sólidas. A Interpol, por exemplo, não aceitou as acusações de terrorismo contra o ex-presidente — ressalta. — E ao lançar tantas denúncias ao mesmo tempo, a própria Áñez acabou se fragilizando.

Em relatório no mês passado, a Human Rights Watch analisou as 1.500 páginas do processo contra Morales por sedição e terrorismo . Segundo a acusação, o ex-presidente estaria por trás do bloqueio de estradas durante 12 dias em agosto, que  impediram a passagem de veículos com oxigênio para pacientes com Covid-19.

César Muñoz, autor do relatório, também entrevistou dois promotores envolvidos no caso, além do procurador do departamento de La Paz, onde corre a acusação. A única prova contra Morales é uma conversa que dura três minutos, onde uma pessoa, identificada como o ex-presidente pela perícia, diz “vamos bloquear as estradas”, “vamos combater a ditadura”.

— Nossa conclusão é que não há provas e pedimos que o MP retire a denúncia — disse Muñoz na época da divulgação do relatório, que também chamava atenção para a falta de independência do Judiciário durante os anos de governo de Morales.

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Morales ainda enfrenta um processo em que é acusado de pedofilia em pelo menos dois casos. No maior deles, que causou comoção nacional às vésperas da eleição, ele é acusado de ter se relacionado com uma adolescente de 19 anos, que o teria visitado no exílio primeiro no México e depois na Argentina. A ação alega que o relacionamento começou quando ela era menor de idade. A adolescente se tornou vítima de ataques políticos e sua irmã chegou a ter o celular confiscado pela polícia. Morales classificou as acusações de “guerra suja” com fins eleitorais.

Para analistas ouvidos pelo GLOBO, o grande desafio de Arce agora é não mostrar que tenta proteger Morales a todo custo.

— Arce terá alguma chance de sucesso se conseguir uma unidade nacional, apesar do contexto de polarização. Para isso, Evo não pode ser uma figura protagonista em seu governo — diz Borges, que acredita que a maioria das investigações contra o ex-presidente não vai prosperar, com exceção da acusação de influência política no antigo Tribunal Supremo Eleitoral, após o pleito do ano passado, que acabou anulado. — Seu problema mais central se reduz a isso. Mas no atual contexto, e se o MAS de fato confirmar sua maioria no Congresso, tudo tende a se tranquilizar.

Mesmo assim, Marcelo Arequipa, cientista político boliviano, não acredita que seja tão simples assim para Morales voltar ao país.

— Há vários fatores internos e externos ao MAS que impossibilitam que Morales volte tão fácil e imediatamente como pretende. Por isso, não vejo tão factível sua volta por ora. De qualquer forma, caso aconteça será um péssimo sinal e poderá gerar uma sensação de impunidade se não prestar contas.

Na noite de segunda-feira, o TSE informou que os novos governantes eleitos tomarão posse na primeira quinzena de novembro. No entanto, o presidente do órgão, Salvador Romero, não precisou exatamente em que dia os eleitos serão empossados.