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Mundo Guerra na Ucrânia

Putin faz discurso cauteloso, reforça narrativa de heroísmo nacional, mas indica que poderá buscar objetivos mais modestos

Presidente russo 'operacionaliza História para servir objetivos políticos', diz especialista de Harvard
O presidente da Rússia, Vladimir Putin, em discurso em Moscou nesta segunda-feira Foto: KIRILL KUDRYAVTSEV / AFP
O presidente da Rússia, Vladimir Putin, em discurso em Moscou nesta segunda-feira Foto: KIRILL KUDRYAVTSEV / AFP

LONDRES —  Contrariando as expectativas, o discurso do presidente da Rússia , Vladimir Putin, durante a parada militar do Dia da Vitória nesta segunda-feira em Moscou foi o mais cauteloso desde o início da invasão da Ucrânia, em 24 de fevereiro. Pode ter sido apenas para não parecer previsível, já que todos falavam em uma nova escalada do conflito ou até em uma declaração de guerra formal — nada que o impeça de fazê-lo mais tarde. Mas pode ter sido também para evitar promessas à população que não tem como cumprir. Afinal, a "operação militar especial", como tem chamado a guerra, deveria ter sido rápida, sem maiores perdas humanas e vitoriosa.

Putin tampouco deu detalhes sobre a atuação brutal das suas Forças Armadas — às quais se dirigiu num discurso mais curto do que de costume na Praça Vermelha — no país vizinho. Referiu-se apenas aos confrontos na região do Donbass, no Leste da Ucrânia, onde separatistas pró-Rússia e o governo de Kiev se enfrentam há oito anos. Ele acusou o Ocidente de incitar a agressão.

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Para o especialista em Rússia George Soroka, de Harvard, esses podem ser sinais de que o líder russo começa a considerar objetivos de guerra mais modestos.

— Uma vitória aceitável poderia concentrar-se na região de Donbass , onde Putin pode sempre alegar genocídio contra a população russa local [para justificar suas ações], em áreas contíguas e em um corredor por terra [até a Península da Crimeia] — disse ao GLOBO.

Presidente russo discursou no desfile do Dia da Vitória sobre o nazismo
Presidente russo discursou no desfile do Dia da Vitória sobre o nazismo

Nem mesmo os esperados voos rasantes sobre Moscou de caças supersônicos, bombardeiros Tu-160 e o avião de comando "apocalíptico" Il-80, a principal aeronave russa a ser usada em eventual guerra nuclear (que seria exibida pela primeira vez desde 2010) aconteceram. O Kremlin atribui a ausência às más condições do tempo, embora o céu estivesse azul.

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Será que Putin se prepara para um recuo estratégico? Nada disso ficou claro nesta segunda. O que é certo é que a narrativa da parada militar segue coerente. Putin reconfigurou o seu formato e o seu significado. De símbolo do sofrimento coletivo e da memória das vítimas da guerra, tornou-se evento festivo de ostentação do aparato militar e enaltecimento de uma nação heroica.

Esse tem sido o amálgama da construção de uma identidade que se tenta forjar no maior país do mundo desde que deixou de ser o grande império soviético. Portanto, não há surpresa sobre a apropriação do discurso da vitória da Segunda Guerra Mundial — ou a Grande Guerra Patriótica, como chamam os russos. A propaganda da guerra na Ucrânia se serve desse projeto de narrativa nacional histórica, segundo Soroka.

— É a História operacionalizada para servir objetivos da política externa contemporânea. Isso começou há 22 anos, desde que ele assumiu o poder — diz.

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Após o colapso da União Soviética em 1991, a parada só foi acontecer em 1995, quando Boris Yeltsin resolveu marcar o aniversário de 50 anos do fim da Segunda Guerra com festejos discretos. Foi com Putin que o evento se tornou portentoso. Quando a previsão do tempo ameaçava com chuvas, aviões eram enviados aos céus para dissipar as nuvens. Nada podia sair errado. A mensagem era que o Exército Vermelho não errou e a Rússia não erra, diz Soroka. A demonstração de poder se dava diante de líderes estrangeiros, que costumavam ser convidados para a festa.

Até 2010, quando Dmitry Medvedev era presidente, ainda se falava na vitória comum dos aliados na Segunda Guerra. À época, a Rússia publicou um livro e lançou um website "Nossa vitória comum”. As referências ao projeto sumiram desde então. A partir dali, era como se a Rússia fosse a única grande vitoriosa. Em 2015, no aniversário de 70 anos — ano seguinte da anexação da Crimeia — os líderes do Ocidente não compareceram ao desfile. Putin e Sergei Lavrov, seu chanceler, explicaram que não faziam falta, porque aquele era um feriado nacional.

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Mas a participação de líderes africanos, da China e da Índia era sinal de que a narrativa se adaptava. O Exército de Libertação Popular chinês desfilou pela primeira vez na Praça Vermelha, assim como o Exército da Índia. Em coletiva com Xi Jinping um dia antes da parada, Putin disse que os dois países foram os que mais sofreram durante a Segunda Guerra. Em 2020, a lista dos convidados limitou-se a líderes autoritários internacionais.

Sem a participação de estrangeiros, o desfile deste ano teve uma novidade, segundo Soroka. Pela primeira vez desde 2010, o líder russo volta a falar em "vitória comum”. Mencionou nominalmente americanos, britânicos e franceses. Para o professor, pode ser uma tentativa de separar a ação de governos e líderes do cidadão comum, o que Putin acusa os países do Ocidente de não fazerem.

Aliás, Putin denunciou o "cancelamento" dos valores russos e o que chamou de tentativas de países do Ocidente de "falsear a História", ou a sua narrativa dos últimos 20 anos. Mas isso não é novo. Desde 2014 na Rússia, proíbe-se questionamento à atuação do Exército Vermelho e a lideranças soviéticas na Segunda Guerra. Em 2020, nova lei torna ilegal "falsear a História”. Em 2021, ficou proibido equiparar nazismo e stalinismo.

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O fato é que cada um se abraça à narrativa que mais lhe convém. Putin diz que “assim como em 1945, a vitória será nossa”, enquanto o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, ao acusar o vizinho de se apropriar da história da Segunda Guerra, faz o mesmo:

— Ganhamos naquela época, vamos ganhar agora.

Na sede do Parlamento Europeu em Estrasburgo, os líderes que também se reuniram para comemorar o aniversário do fim da Segunda Guerra agiam como se o Velho Continente não estivesse em guerra.

Nada disso ajuda a diminuir as incertezas sobre os desdobramentos desse conflito, que, segundo analistas, pode levar anos. Certo mesmo é que as múltiplas narrativas têm resultados que não devem ser tratados como meras estatísticas, ou efeitos colaterais. Sobe o número de mortos de todos os lados, aumenta o rastro de destruição bilionário na Ucrânia e na própria Rússia, e cresce a emigração de seis milhões de ucranianos que fogem da guerra e de cerca de 250 mil russos que não veem futuro em seu país.