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Quais desconfianças pairam sobre a China e a Covid-19?

Falta de transparência, demora para agir e até suposta falta de segurança em laboratório estão entre críticas feitas por países ocidentais, em especial os EUA
Homem de máscara em frente a outdoor com o presidente chinês Xi Jinping em Belgrado Foto: DJORDJE KOJADINOVIC / REUTERS
Homem de máscara em frente a outdoor com o presidente chinês Xi Jinping em Belgrado Foto: DJORDJE KOJADINOVIC / REUTERS

Na sexta-feira, autoridades da China anunciaram a revisão do número de vítimas fatais de Covid-19 em Wuhan, cidade onde a pandemia da doença começou, somando 1.290 mortes à contagem anterior, o que fez com que o número de vítimas fatais na cidade aumentasse 50%. Isso fez com que, no país, o número total de vítimas subisse 40%.

A recontagem, que, segundo as autoridades, corrige "lapsos" na notificação de casos no início da pandemia, fornece combustível a críticos da China no Ocidente, que têm recorrentemente acusado o país de mentir sobre os seus dados oficiais, de suprimir informações e de negligência na gestão da crise em sua origem.

O maior desses críticos é o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que, muito antes da epidemia, já acirrara uma disputa com Pequim em diversos âmbitos, como o comercial, o tecnológico, o militar e o estratégico.

Desde o começo do surto, Trump, que concorre à reeleição, procura responsabilizar publicamente Pequim pela epidemia. O presidente dos Estados Unidos faz críticas variadas, que vão desde a acusação de que “o vírus é chinês” — afirmação muita vezes considerada racista — a outras mais específicas.

Trump já disse que Pequim demorou a agir para conter os primeiros casos, e omitiu a contagem de vítimas. Mais recentemente, afirmou que o vírus pode ter escapado acidentalmente de um laboratório.

O controle ao livre fluxo de informações, segundo os críticos ocidentais, pode ter sido decisivo para impedir que houvesse a percepção correta do risco da ameaça. A China responde que sua ação foi decisiva para conter um alastramento pior da doença, adotando uma quarentena em uma escala sem nenhum precedente histórico.

Pequim também disse que notificou os Estados Unidos do novo surto de coronavírus em 3 de janeiro e que o Departamento de Estado dos EUA só alertou os americanos que estavam em Wuhan em 15 de janeiro. A demora para agir, segundo os chineses, deve-se unicamente a Washington.

Já a recente atualização do número de casos, afirmam, é um procedimento que se deve a dificuldades para manter os registros atualizados perante o rápido avanço da doença, dificuldade que também enfrentam outros países.

Ambos os lados procuram responsabilizar o outro pela crise sanitária, ao mesmo tempo em que se eximem de qualquer erro decisivo.

Outros atores têm se envolvido na disputa. Diante do crescimento da epidemia na França, face ao suposto controle interno chinês, o presidente francês, Emmanuel Macron, acusou Pequim de falta de transparência, afirmando que "não podemos ser tão inocentes de acreditar que a China lidou tão melhor com isso".

O chanceler britânico, Dominic Raab, cujo governo é aliado de Washington, foi mais longe, afirmando que os negócios com os chineses não podem voltar ao normal até que o governo chinês esclareça melhor como tratou da crise sanitária.

Em meio à disputa política, à tentativa de desresponsabilização por todas as partes e da obtenção de benefícios para si, há dúvidas sobre a origem da epidemia e a gestão dela pelas autoridades chinesas que permanecem.

É incerto qual é o melhor momento para responder a estas questões, e a troca de acusações pode impedir uma cooperação internacional capaz de salvar vidas. Porém, como qualquer outra ditadura, a China carece de transparência, e procura silenciar seus críticos. E o surto de Covid-19, assim como toda grande questão científica, ainda tem pontos incertos e obscuros.

Abaixo, as principais dúvidas que permanecem sobre a China e a pandemia:


Possível demora para responder à crise:

O primeiro paciente a ser identificado adoeceu em Wuhan, capital da província de Hubei, no dia primeiro de dezembro, mas não se sabe quando ele procurou os serviços de saúde, nem os detalhes do caso, exceto que ele não tinha vínculos conhecidos com o mercado de Wuhan.

É certo que, no final de dezembro, autoridades já haviam identificado que havia uma nova doença infecciosa, com efeitos potencialmente graves.

Lu Xiaohong, chefe do setor de gastroenterologia no Hospital Municipal No. 5, disse ao jornal Diário da Juventude Chinesa que, em 25 dezembro, ela ouvira que uma nova doença estava se espalhando entre profissionais da saúde em dois hospitais de Wuhan.

No dia 30 de dezembro, o médico Li Wenliang escreveu num grupo para amigos médicos que uma doença misteriosa afetara sete pacientes, e os pusera de quarentena no setor de emergência do seu hospital.

Foi só após o alerta de Li — que sofreu represálias do departamento municipal de saúde por ter mandado a mensagem, e precisou assinar um documento dizendo que divulgara informações sigilosas, antes de ele mesmo morrer por Covid-19, em fevereiro — que as autoridades agiram.

No dia seguinte à sua mensagem, aconteceu o primeiro alerta por autoridades regionais, que avisaram o escritório em Pequim da Organização Mundial da Saúde (OMS) de uma nova doença, mas sem avaliar sua gravidade.

No dia 1º de janeiro, policiais e autoridades sanitárias fecharam o mercado de frutos do mar de Wuhan, que vendia também animais selvagens, anunciando que estava vinculado a um surto de pneumonia. Esta foi a primeira manifestação pública das autoridades sobre uma nova doença. A informação repercutiu em meios de comunicação ocidentais, como BBC, Bloomberg e The New York Times.

O vírus foi isolado e mapeado geneticamente na primeira semana de janeiro, e o seu código genético foi disponibilizado para o resto do mundo no dia 11 de janeiro.

A esta altura, a principal autoridade a se manifestar sobre o caso era a Comissão Municipal de Saúde de Wuhan. Também em 11 de janeiro, esta entidade informava que havia 41 pacientes confirmados. Destes, 13 deles não tinham vínculos com o mercado, o que indicava que a doença estava se propagando pela cidade.

Ainda assim, o prefeito da cidade, Zhou Xianwang — que, posteriormente, assumiu ter demorado a agir — manteve aglomerações. Ele fez seu discurso anual ao Congresso Nacional do Povo no dia 7 de janeiro, e, pouco depois, Wuhan realizou um enorme banquete anual com a presença de mais de 40 mil famílias, que os críticos mais tarde citaram como uma prova de que as autoridades não respeitaram a gravidade da ameaça.

Não se sabe exatamente quando o governo central foi alertado da gravidade da pandemia. Em 18 de janeiro, o principal epidemiogista de Pequim foi enviado a Wuhan para analisar o surto. O presidente Xi Jinping se manifestou pela primeira vez em 20 de janeiro, quando alertou a população da epidemia e tomou uma ação decisiva ao decretar a maior quarentena da história da humanidade até então na província de Hubei, e medidas de distanciamento social em quase todo o país.

Permanece incerto exatamente como o país poderia ter sido mais ágil, já que muitos países do Ocidente, já de posse das informações oriundas da China, demoraram a tomar medidas de isolamento, inclusive o Brasil e os Estados Unidos. Reação diferente tiveram vizinhos asiáticos, como a Coreia do Sul, que tomaram providências para conter a pandemia assim que tiveram informações da China.

Sonegação de informações de interesse global

A China é acusada de esconder a extensão da gravidade de sua epidemia, desde os primeiros dias até hoje. Em seu começo, esta sonegação de dados teria tido gravidade por não permitir que fosse percebida a seriedade do problema. Em seguida, a ocultação de informações continuaria por interesse do governo chinês em se eximir de responsabilidade, ao mesmo tempo em que se apresenta como mais eficiente do que os ocidentais.

Esta questão foi abordada nesta sexta-feira, quando autoridades chinesas atualizaram as estatísticas de casos confirmados e de mortes.  O número oficial de vítimas fatais em razão da doença em Wuhan cresceu em 50%, com a adição de 1.290 mortes à contagem anterior (2.579). O número de casos também foi revisto e aumentou.

Modelos matemáticos calculam que, no começo de janeiro, o número de infectados em Wuhan dobrava a cada dia. Apesar disso, a contagem oficial permaneceu a mesma, com 41 pacientes confirmados de 11 até 18 de janeiro. Para críticos, esta falta de atualizações foi uma omissão de informações determinante por parte da ditadura chinesa.

O governo local disse que os novos dados devem-se majoritariamente a falhas de contabilização dos casos nos primeiros dias da epidemia, em meio à superlotação dos hospitais e à escassez de testes, já que o fato de o vírus ser novo exigiu a produção de um teste de diagnóstico específico.

A nova doença necessariamente exige uma logística complexa para o seu diagnóstico em larga escala, e sistemas de vigilância de países ocidentais e democracias, incluindo até mesmo potências desenvolvidas como Alemanha e EUA, ainda hoje têm dificuldades para monitorar a gravidade da crise.

Origem do vírus

Embora testes tenham descartado que o vírus tenha sido criado em laboratório, nos últimos dias ganhou força nos Estados Unidos a especulação de que uma transmissão acidental para cientistas que pesquisavam coronavírus em morcegos poderia ter sido a origem da pandemia.

Segundo informações publicadas por Josh Rogin no jornal Washington Post na última quarta-feira, autoridades americanas visitaram o Instituto de Virologia de Wuhan, um laboratório de segurança máxima, em janeiro de 2018, onde pesquisadores investigavam a transmissibilidade de coronavírus de morcegos para humanos.

A equipe de diplomatas ficou preocupada com as condições de segurança do local e escreveu duas vezes ao Departamento de Estado pedindo para o governo americano dar apoio ao laboratório chinês, escreveu Rogin, que teve acesso aos telegramas.

Na primeira mensagem, as autoridades advertiram que a pesquisa em coronavírus representava “um risco de uma nova pandemia similar à Sars”. O fato de, dois anos depois,  haver uma nova pandemia similar à  da Sars “alimentou discussões no governo americano sobre se este ou outro laboratório de Wuhan poderia ser a fonte do vírus”, disse Rogin.

Nos dias seguintes à publicação do artigo, Donald Trump e autoridades do seu governo deram entrevistas em que alimentaram as suspeitas sobre o laboratório de Wuhan, ainda que não haja evidências de que o vírus tenha "escapado" de lá.

Na sexta-feira,  o governo da França, que em 2004 assinou um acordo com a China para a criação do Instituto de Virologia em Wuhan, afirmou que não há nenhuma prova de que o novo coronavírus tenha ligação com as pesquisas feitas no lugar. "Gostaríamos de deixar claro que não há até o momento nenhuma evidência que corrobore a informação que começou a circular na imprensa dos EUA que estabelece uma relação entre as origens da Covid-19 e o trabalho no laboratorio de Wuhan, China", disse um porta-voz do presidente Emmanuel Macron.

A especulação, no entanto, é alimentada pelo fato de Pequim ter imposto rígidas restrições a pesquisadores chineses que investigam as origens do vírus, mantendo o conhecimento sobre o assunto sob o filtro dos canais oficiais.

Pequim também é acusada de não compartilhar material genético coletado nos primeiros casos registrados, o que permitiria que pesquisadores de outros países registrassem a evolução da doença. O compartilhamento de amostras genéticas recorrentemente gera disputas entre países e até entre pesquisadores, e o mesmo aconteceu durante o surto de zika no Brasil em 2016.

Censura

A perseguição à liberdade de expressão é outro aspecto importante das acusações, pois também pode ter impedido informações cruciais de circularem livremente.

Na China, além da advertência ao primeiro médico que falou publicamente da doença, dois jornalistas que reportaram a gravidade a crise em janeiro, Fang Bing e Chen Qiushi, desapareceram, sem que o governo desse satisfações de seus paradeiros.

O governo chinês também expulsou 12 jornalistas americanos, alegando responder a uma medida americana que restringiu a operação de meios de comunicação oficiais chineses nos EUA.

Parentes de vítimas que postaram fotos em ritos fúnebres também tiveram o conteúdo que registraram censurado.

É um consenso que há censura e não há liberdade de expressão na China. Permanece incerto o quanto um fluxo livre de informações teria permitido a contenção da emergência.