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Quem é José Antonio Kast, o ultraconservador católico que radicalizou a direita do Chile

Fala serena e calma de candidato oculta semelhanças de ideias com líderes como Bolsonaro e Trump e propostas como trincheiras nas fronteiras do país
José Antonio Kast, candidato do Partido Republicano à Presidência do Chile, no comício de encerramento de sua campanha Foto: MAURO PIMENTEL / AFP
José Antonio Kast, candidato do Partido Republicano à Presidência do Chile, no comício de encerramento de sua campanha Foto: MAURO PIMENTEL / AFP

O jeito polido e manso de José Antonio Kast a princípio contrasta com o de outros líderes da direita radical global. Quando se atenta às suas palavras e ideias, entretanto, logo se notam as semelhanças entre o candidato a presidente do Chile e figuras que ele abertamente admira, como Donald Trump e Jair Bolsonaro.

Em 2017, quando o Palácio de La Moneda foi iluminado com as cores do arco-íris em uma ação para promover a cidadania LGBT+, Kast disse que o país “se rendia à ditadura gay”.

Perguntado sobre o golpe em 1973, comentou que, ao impor a ditadura, Pinochet “optou pela liberdade” e “fez o que tinha que fazer”. Seu plano de governo original dizia não haver provas científicas do aquecimento global.

O candidato afirma se opor a um suposto “governo mundial”, e prometeu “tirar todos os recursos que puder de organismos internacionais que promovem o globalismo”. Frente a uma crise migratória no Norte do país, prometeu construir trincheiras nas fronteiras.

Aos lugares-comuns de ultraconservadores contemporâneos, Kast acrescenta elementos próprios à mais dura direita do Chile.

— Kast representa uma combinação muito chilena entre neoliberalismo e conservadorismo católico — afirmou ao GLOBO Julieta Suárez Cao, professora de ciência política da Universidade Católica do Chile.

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Missão

Seu catolicismo vem de berço. O caçula de dez irmãos, Kast, de 55 anos, nasceu em Santiago em uma família de imigrantes alemães próxima ao movimento apostólico conservador Schoenstatt. Hoje pai de nove filhos, o político diz que o grupo, do qual ainda faz parte, lhe fez entender qual era a “sua missão”, e quais eram os meios para cumpri-la:

—  A Igreja me foi mãe e mestra. Foi essencial para eu entender que é necessário ser acolhedor no trato humano com alguém de quem discordo, ao mesmo tempo em que vou informando a pessoa — afirmou em uma entrevista de 2008. — Quando uma pessoa discorda de mim, não brigo, não ataco. Procuro mostrar que há uma alegria no que defendo, sem dar o braço a torcer. É preciso ser suave na forma e firme no fundo.

A relação com o modelo econômico herdado de Pinochet também remete à família: um de seus irmãos, Miguel, foi um dos Chicago Boys, o grupo de economistas que defendia a desregulação econômica como estratégia de crescimento, tendo sido ministro de Estado e presidente do Banco Central durante a ditadura.

Na reta final das eleições, veio a público outra faceta menos conhecida da família Kast: uma investigação da Associated Press demonstrou que o pai do candidato entrou para o Partido Nazista meses antes de seu 18º aniversário. Kast sempre dissera que o progenitor apenas fora um recruta no Exército alemão, o que não fazia dele um nazista. Contudo, enquanto o serviço militar era obrigatório, a filiação ao Partido Nazista era voluntária.

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Novo ciclo

O envolvimento do próprio Kast com a política deu-se no começo da década de 1980, na Faculdade de Direito da Universidade Católica, então um foco da militância e do pensamento de direita. Segundo antigos colegas disseram ao jornal La Tercera, Kast era um estudante tímido, “que falava pouco” e “não chamava muito a atenção”. Na faculdade, aproximou-se do professor Jaime Guzmán, um dos arquitetos da ainda vigente Constituição de 1980 e fundador do partido de direita União Democrata Independente (UDI), ao qual o próprio Kast se filiou.

Em 1988, Kast fez campanha pela continuação da ditadura de Pinochet no plebiscito nacional que decidiu pelo fim do regime. Após uma candidatura fracassada a prefeito em 1996, tornou-se deputado pela UDI em 2001. No partido, foi várias vezes chefe de bancada e uma vez secretário-geral. Em 2016, decidiu deixar a sigla, para concorrer à Presidência como candidato independente no ano seguinte:

— É preciso começar um novo ciclo na política, no qual o politicamente correto seja deixado de lado — disse ao justificar a decisão.

No pleito de 2017, vencido por Sebastián Piñera, Kast obteve surpreendentes 7,93%, chegando em quarto. Naquela campanha, já se veriam marcas da atual: uso intensivo das mídias sociais, anticomunismo ferrenho, propagação de falácias e acusações sem fundamento nem provas. Na disputa atual, o cardápio de mentiras e ilações foi variado, indo desde a acusação de que a prefeita de Santiago, Irací Hassler, do Partido Comunista, cancelou o festival musical Lollapalooza por “razões ideológicas”, até a de que a ex-presidente Michelle Bachelet foi “cúmplice no tráfico de pessoas”.

Oposição ao aborto

Em 2019, Kast fundou o Partido Republicano, pelo qual agora concorre. Em seu estatuto, a sigla diz ser “absolutamente contra o aborto em todas as suas formas”, contra o casamento homossexual e a favor do “direito dos filhos de ter pai e mãe". O partido também promove "uma economia social de mercado, com forte defesa da livre iniciativa privada em matéria econômica”.

Esses pilares estão presentes no atual programa de Kast à Presidência. O Chile atualmente permite aborto apenas em três casos: quando há risco para a vida da mulher, quando a gestação é considerada inviável ou para vítimas de estupro. Kast quer tornar todas as opções ilegais:

— É preciso reverter isso e buscar a saída real, cuidar da mãe e do filho — afirmou.

Em termos econômicos, seu programa pretende aprofundar o modelo de liberalismo econômico atual, com o objetivo de gerar um "Estado eficiente, eliminar a burocracia e a plutocracia". Uma de suas principais propostas é reduzir os impostos das empresas de 27% para 17%. Para financiar a perda de receitas, em um país que já vive problemas fiscais, o candidato promete extinguir 20 mil cargos públicos, o que dificilmente seria suficiente para tapar o rombo.

Ao avançar para o segundo turno, o programa foi ajustado, e agora Kast diz que a redução tributária acontecerá “à medida que a economia volte a uma trajetória de crescimento sustentável e as contas fiscais se estabilizem”, sem prazo.  Este foi um dos muitos sinais de moderação que o candidato ofereceu na reta final de sua campanha de ascensão meteórica, em busca de apoiadores centristas.

Abraço da centro-direita

Segundo a imprensa chilena, a equipe de Kast admite que não esperava crescer tão rapidamente, e, em vistas disso, inseriu vários pontos propositalmente polêmicos no programa, como forma de pautar o debate público. À medida que cresceu, passou a pensar na governabilidade. No segundo turno, a imensa maioria da direita tradicional, da UDI à Renovação Nacional, do presidente Piñera, abraçou sua candidatura.

Embora outras propostas, como a extinção do Ministério da Mulher, tenham sido abandonadas, o essencial do programa se manteve. Os principais temas que o candidato abordou foram a luta contra o crime, a repressão contra a imigração irregular, a importância do crescimento econômico e a mão dura para impor a ordem e alcançar a pacificação social.

Kast pretende propor ao Parlamento um novo estado de emergência, no qual, durante sua vigência, o presidente tenha o poder de interceptar, abrir ou registrar documentos e todos os tipos de comunicações e prender pessoas em suas próprias casas ou em locais que não sejam prisões. A medida de exceção pode vir a ser usada caso haja grandes protestos como os de 2019. No Sul, onde conflitos agrários envolvendo indígenas mapuche vivem o pior momento em anos e ações violentas têm aumentado de frequência, promete pedir “a colaboração dos militares, apoiando as forças policiais para acabar com as gangues terroristas”.

A relação com a Convenção Constitucional em curso também promete ser conflituosa. Embora o candidato tenha dito que, se vencer, “a primeira coisa” a fazer será “tentar gerar mesas de diálogo com a Convenção”, ele fez campanha pelo “Não” no plebiscito que convocou o órgão.

No encerramento de sua campanha, em um rico distrito de Santiago, era possível ver alguns poucos apoiadores empunhando a bandeira do arco-íris, para afastar a acusação de homofobia. Ao seu lado estavam grupos de extrema direita, como o The Real Patriots, formado por um ex-líder de torcida organizada condenado por homicídio. Em um vídeo, muitos apoiadores saltam gritando “quem não pula é uma bicha comunista”.

— O Chile jamais será marxista nem comunista — disse Kast, em seu curto discurso.