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Quem é o ‘Murdoch francês’ por trás do candidato da direita radical Zemmour

Presidenciável de retórica racista e xenófoba ganhou fama como comentarista de uma das emissoras de Vincent Bolloré, que criou império midiático voltado a temas caros à ultradireita e mudou debate público na França
Vincent Bolloré (direita), magnata de mídia do grupo Vivendi, ao lado de seu filho Yannick Bolloré: o canal CNews do grupo deu visibilidade ao candidato da direita radical Éric Zemmour Foto: Jean-Paul Pelissier / REUTERS
Vincent Bolloré (direita), magnata de mídia do grupo Vivendi, ao lado de seu filho Yannick Bolloré: o canal CNews do grupo deu visibilidade ao candidato da direita radical Éric Zemmour Foto: Jean-Paul Pelissier / REUTERS

PARIS - A candidatura do ultradireitista Éric Zemmour às eleições presidenciais francesas de 2022 não é fruto do acaso. Por trás de sua ascensão está o megaempresário Vincent Bolloré, que nos últimos seis anos constituiu um império de mídia focado em temas caros à extrema direita, como a imigração e o Islã. A ofensiva do industrial bilionário nos debates da França tem sido comparada à influência na política americana do magnata da mídia Rupert Murdoch e seu canal Fox News.

Com a 14ª maior fortuna do país, estimada em mais de € 8 bilhões, Bolloré, de 69 anos, acumulou ao longo de décadas investimentos bem-sucedidos em setores como transportes, logística e baterias eletrônicas. Seu interesse pela mídia é recente, datando de 2015, quando adquiriu o controle do Canal Plus, filial do grupo Vivendi. A partir daí, suas ambições só cresceram. Hoje, tem o mando dos canais CNews e C8, da rádio Europe1, da revista Paris Match e do semanário Journal du Dimanche. Na sua mira está ainda o tradicional jornal conservador Le Figaro, da família Dassault, a quem fez uma oferta de compra.

Em seus principais veículos, Bolloré imprimiu uma linha editorial caracterizada pela defesa da identidade francesa e dos valores católicos tradicionais e pela crítica à imigração no país, ao Islã, a novos direitos das minorias e à modernização dos costumes na sociedade. Éric Zemmour era um ilustre desconhecido até outubro de 2019, quando o próprio Bolloré o colocou como comentarista na CNews, cujo nome é assumidamente inspirado na americana Fox News de Murdoch, reconhecida vitrine para os ultras do Partido Republicano e seguidores do ex-presidente Donald Trump.

Para Julia Cagé, do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences-Po), especialista em economia da mídia, o império midiático de Bolloré representa uma ameaça ao exercer uma forte influência sobre as escolhas políticas dos cidadãos, colocando seus veículos a serviço de uma ideologia: a da direita ultraconservadora que tende para a extrema direita.

— A candidatura de Zemmour e seu sucesso têm muito a ver com sua exposição nos meios de propriedade ou controlados por Bolloré. A CNews não apenas se tornou um canal de opinião, não sendo mais um canal de notícias, mas levou a uma radicalização direitista do discurso de grande parte da mídia francesa, em particular os canais BFMTV e LCI — afirma Cagé. — Hoje, parece “normal” falar de “grande substituição” [teoria conspiratória segundo a qual a população europeia está sendo substituída por estrangeiros muçulmanos] ou “islamoesquerdismo”, conceitos que não se baseiam em nenhuma realidade factual e que nos chegam diretamente da extrema direita. Isso não só favorece a direita radical, mas também a abstenção eleitoral.

Segundo ela, lições devem ser tiradas da experiência americana: o que ocorreu com a Fox News nos EUA inquieta por um possível “efeito CNews” na França:

— Pesquisadores, e cito principalmente em Stefano DellaVigna e Ethan Kaplan, demonstraram que a Fox News pode ter feito inclinar o voto de 2000 em favor de George W. Bush. Também sabemos o impacto que o canal teve na eleição de Trump. Na França, a CNews está fazendo o jogo da extrema direita da mesma maneira e consegue convencer uma parte do eleitorado a optar por Zemmour.

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Antecedente em 1920

Em 2007, Bolloré se tornou alvo de polêmica ao emprestar seu jato e seu iate para que Nicolas Sarkozy, eleito presidente da República na véspera, repousasse na costa da ilha de Malta. Alcunhado de “pirata do capitalismo” por sua forma de gerir seus negócios, o magnata recentemente se declarou culpado em um processo judicial sobre práticas de corrupção na África para obtenção de mercados de administração portuária. Como patrão de mídia, sua reputação é de mão de ferro no controle do conteúdo editorial e de seus subordinados: censura de programas, demissões arbitrárias, proibição aos humoristas de zombar de seus protegidos — Zemmour em primeiro lugar. Para o comando da nova gestão de Paris Match, nomeou Patrick Mahé, 74, conhecido por ter integrado no passado o grupo de extrema direita Occident e a organização ultranacionalista Jeune Europe.

Em outubro, a organização Repórteres Sem Fronteiras denunciou seus métodos como “um verdadeiro perigo para a liberdade de imprensa e a democracia”. O ex-presidente François Hollande entrou no debate ao afirmar que “Trump passou do reality show à Casa Branca, mas era o candidato do Partido Republicano, enquanto Zemmour é o candidato de um grupo audiovisual”.

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O historiador Alexis Lévrier destaca o fato de que é a primeira vez na França desde os anos 1920 que um patrão de imprensa escolhe impor uma linha xenófoba e racista a seus veículos. No final da Primeira Guerra, recorda ele, o industrial do perfume François Coty, admirador do ditador italiano Benito Mussolini, comprou o Le Figaro e L’Ami du Peuple, jornal que teve sucesso por um período com uma linha abertamente fascista.

— Mas o público não queria uma imprensa fascista, e Coty se viu coberto de dívidas e morreu arruinado. Não penso que o mesmo possa ocorrer com Bolloré, que é muito hábil. O impressionante é que ele construiu um império tentacular, com veículos importantes. Ele não esconde suas ambições de fazer triunfar suas ideias. Tem a visão de uma nação étnica. É uma cruzada, o retorno a um catolicismo muito conservador que rejeita todas as evoluções na sociedade. É um combate cultural antes de ser político, algo inédito.

Para Lévrier, a CNews se tornou um canal identitário e xenófobo, em que as únicas questões que contam são a imigração, o Islã e a segurança, embora as principais preocupações dos franceses hoje, segundo as pesquisas, sejam o poder aquisitivo, a saúde e a ecologia. Segundo ele, com a CNews e Zemmour, o judeu e o antissemitismo do entreguerras passaram a ser o muçulmano e o Islã.

— Há uma inquietude real com a imigração, bem como um aumento da xenofobia e do sentimento antieuropeu. Essas mídias conseguiram captar isso e insistir de forma obsessiva nestes temas. Quando falam de economia, é pelo viés da imigração. E recorrem também a um discurso para deslegitimar a imprensa, dizer que todos os jornalistas são vendidos e de esquerda, uma das receitas de Trump.

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Driblando a lei

O Conselho Superior do Audiovisual (CSA), órgão público independente que tem como missão supervisionar o setor, fez várias advertências à CNews por violação dos limites da liberdade de expressão ou do tempo dedicado às diferentes forças políticas. O advogado Benoit Huet, especialista em governança de mídia e liberdade de expressão, ressalta que as TVs estão submetidas por lei a obrigações de pluralismo e a exibir um conteúdo representativo da diversidade dos partidos políticos.

— A CNews joga com a legislação, exibe discursos do presidente Emmanuel Macron ou de Jean-Luc Mélenchon [líder da França Insubmissa, partido da esquerda radical] de madrugada, e durante o dia põe apenas editorialistas de extrema direita. Propósitos racistas e incitações ao ódio racial já foram sancionados pelo CSA. Um dos momentos chocantes foi quando convidaram para um programa o escritor Renaud Camus, teórico da “grande substituição”, que inspirou o massacre de Christchurch, na Nova Zelândia [atentado de 2019 que causou 51 mortes].

Para Huet, a maior diferença entre Murdoch e Bolloré está no fato de que o primeiro é um “puro homem da mídia”, enquanto o francês é originado da indústria. Fora isso, considera justa a comparação. Mas se mantém otimista em relação à capacidade da CNews de influir de forma decisiva no resultado das urnas.

— Permaneço confiante no fato de que a sociedade francesa tem a vantagem de possuir um sistema educativo que funciona, onde a maioria da população é capaz de decodificar essas ideologias muito perigosas. Talvez seja um pouco ingênuo, mas penso que os eleitores reagirão e que a extrema direita não conseguirá passar.