Mundo Guerra na Ucrânia

Rússia diz que acordo sobre neutralidade está próximo: Ucrânia desistiria da Otan, mas manteria Forças Armadas

Moscou divulga sua versão detalhada sobre o andar das negociações e indica aceitar que vizinho mantenha suas armas. Kiev pede garantias de segurança do Ocidente
Foto divulgada pela delegação da Ucrânia da reunião entre as partes na segunda-feira Foto: Reprodução
Foto divulgada pela delegação da Ucrânia da reunião entre as partes na segunda-feira Foto: Reprodução

Detalhes importantes das condições de um possível acordo de paz que encerre a guerra entre Rússia e Ucrânia vieram a público nesta quarta-feira, quando autoridades russas indicaram estar dispostas a aceitar que a Ucrânia mantenha as próprias Forças Armadas para a autodefesa, contanto que o país se comprometa a desistir da aspiração de se juntar à Organização do Tratado do Atlântico Norte ( Otan ).

A Rússia está disposta a aceitar que a Ucrânia adote um modelo comparável aos da Áustria e da Suécia, disse o ministro das Relações Exteriores russo, Sergei Lavrov. O país disporia de Forças Armadas para se defender de agressões, mas se declararia neutro em futuros conflitos, comprometendo-se a não se unir a nenhuma aliança militar e não sediar bases militares estrangeiras.

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De acordo com o jornal britânico Financial Times, o plano de paz em discussão entre os dois lados teria 15 pontos.

Ainda não há informações sobre como uma possível redução das sanções impostas por países ocidentais contra a Rússia faria parte de um acordo, se é que faria. Nesta quarta, autoridades de Moscou e Washington se falaram pela primeira vez, numa conversa entre o conselheiro de Segurança Nacional americano, Jake Sullivan, e Nikolai Patruchev, secretário do Conselho de Segurança russo. O lado russo não divulgou detalhes do diálogo. Já segundo o lado americano, Sullivan teria dito a seu colega que, se a Rússia está levando a diplomacia a sério, deveria parar os ataques.

— O status neutro agora está sendo seriamente discutido, junto, é claro, de garantias de segurança — disse Lavrov à BBC russa nesta quarta. — Agora isso está sob discussão nas negociações. Há formulações absolutamente específicas e, na minha opinião, um acordo sobre elas está próximo.

Lavrov disse que "o clima de diálogo que começou a surgir nos dá esperança de que possamos concordar especificamente sobre esse tópico".

— Embora esteja claro que o problema é muito mais amplo, se pudermos proclamar neutralidade e declarar garantias, será um avanço significativo.

As informações mais específicas foram oferecidas por Vladimir Medinsky, o principal negociador da Rússia, que disse à TV estatal russa:

— A Ucrânia está oferecendo uma versão austríaca ou sueca de um Estado desmilitarizado neutro, mas ao mesmo tempo um Estado com seu próprio Exército e Marinha.

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Desde o início da invasão, a Rússia aponta a neutralidade e a desmilitarização da Ucrânia como condições para o fim da guerra. O termo neutralidade é muito abrangente e inclui desde países que não têm Forças Armadas, como a Costa Rica, a outros que têm Exército, como a Áustria e a Suécia. Agora, a Rússia indica estar disposta a aceitar que a Ucrânia mantenha seu Exército, entendendo a neutralidade armada como uma forma de desmilitarização.

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Após a fala de Lavrov, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, disse que “esta é uma variante que está sendo discutida e que pode realmente ser vista como um compromisso”. Peskov dissse que ainda é cedo para prever um acordo entre as partes.

— O trabalho é difícil e, na situação atual, o próprio fato de (as negociações) continuarem é provavelmente positivo.

A Ucrânia várias vezes indicou estar disposta a desistir da entrada da Otan, contanto que receba garantias de segurança. O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky — que, na terça-feira, deu um dos mais explícitos sinais de que pode desistir da intenção de se unir à aliança — também disse que as negociações avançam, mas um acordo ainda não é iminente:

— As reuniões continuam e, estou informado, as posições durante as negociações já parecem mais realistas. Mas ainda é necessário tempo para que as decisões sejam do interesse da Ucrânia — disse Zelensky.

Estados garantidores

O negociador-chefe ucraniano, Mykhailo Podolyak, disse que um modelo de garantias de segurança juridicamente formalizadas que ofereceriam proteção à Ucrânia por um grupo de aliados no caso de um ataque futuro estava "na mesa de negociações". “O que isso significa? Um acordo rígido com vários Estados garantidores assumindo obrigações legais claras para prevenir ativamente os ataques", disse  no Twitter, sem dar mais detalhes.

Podolyak evitou comparações com o modelo de outros países. "A Ucrânia está em uma guerra direta com a Rússia. Portanto, o modelo só pode ser 'ucraniano' e apenas com base em garantias sólidas em termos de segurança", afirmou.

Ele disse ainda também os signatários deveriam se comprometer com uma intervenção em caso de agressão contra a Ucrânia. "Isto significa que os signatários das garantias não podem ficar à margem em caso de ataque contra a Ucrânia como acontece hoje e que participarão ativamente no conflito do lado ucraniano e fornecerão imediatamente as armas necessárias", disse Podolyak.

A sugestão do negociador ucraniano evoca o Artigo 5 da Otan, que prevê a defesa mútua dos países-membros, e pode ser um obstáculo às negociações.

Além da neutralidade e da desmilitarização da Ucrânia, no início de sua invasão a Rússia apresentou outras condições, como o reconhecimento por Kiev da independência das províncias separatistas no Leste ucraniano e da soberania russa sobre a Península da Crimeia, anexada em 2014. Outra condição era a “desnazificação” da Ucrânia, em geral entendida com uma mudança de regime, com a substituição do atual governo por marionetes de Moscou. O governo russo desde a semana  passada passou a afirmar não querer tirar Zelensky do poder.

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A guerra completa três semanas nesta quinta-feira. Mais de 3 milhões de pessoas já fugiram da Ucrânia nesse período, segundo as Nações Unidas, com mais de 1,8 milhão indo para a vizinha Polônia. Em Kiev, cerca de metade dos 3,4 milhões de habitantes deixaram a cidade.

As estimativas dos números de mortos variam, mas chegam a oito mil, entre civis e militares, do lado ucraniano, e até seis mil do lado da Rússia. A Rússia não capturou nenhuma das dez maiores cidades da Ucrânia e perdeu centenas de veículos blindados e dezenas de tanques.

Modelos potenciais

A Áustria, que a Rússia agora cita como um modelo potencial, tem um compromisso com a neutralidade desde 1955, obrigação que está consagrada em sua Constituição. Segundo ela, a Áustria não pode se unir a uma aliança militar, permitir o estabelecimento de bases estrangeiras ou participar de guerras.

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Por outro lado, a Áustria tem Forças Armadas, com 22 mil soldados na ativa e 945 mil na reserva. As principais missões delas são proteger as instituições constitucionalmente estabelecidas e as liberdades democráticas da população (o que inclui se defender de ameaças externas), manter a ordem e a segurança dentro do país e prestar assistência em caso de catástrofes naturais e desastres de magnitude excepcional.

Nas décadas seguintes à promulgação da Constituição, a Áustria seguiu uma política de “neutralidade ativa”, principalmente sediando reuniões entre os blocos comunista, liderado pela União Soviética, e capitalista, comandado pelos EUA. Recentemente, o país passou a sediar, em Viena,  as discussões para a retomada de um acordo nuclear com o Irã. As Forças Armadas austríacas também vêm participando de operações de manutenção da paz da ONU após uma reforma constitucional em 1997.

Já a Suécia abandonou um período de quase 200 anos de neutralidade militar oficial em 2009, quando assinou tratados de autodefesa mútua com a União Europeia e com países nórdicos. Mesmo assim, o país continuou a se comportar como um país neutro e não alinhado. Após a invasão da Ucrânia, autoridades suecas sinalizaram considerar aderir à Otan , possibilidade descartada por sua premier.