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Saiba como o comportamento paradoxal dos militares bolivianos foi chave para queda de Evo Morales

Presidente se reunia semanalmente com a alta cúpula militar e participava com entusiasmo de seus desfiles
O presidente boliviano Evo Morales, ao lado do chefe das Forças Armadas Williams Kaliman, durante evento oficial Foto: AIZAR RALDES / AFP / 23-03-2019
O presidente boliviano Evo Morales, ao lado do chefe das Forças Armadas Williams Kaliman, durante evento oficial Foto: AIZAR RALDES / AFP / 23-03-2019

LA PAZ — Um dos fatores-chave para a queda do presidente da Bolívia, Evo Morales , foi o papel passivo adotado pelas Forças Armadas que decidiram, primeiramente, “não enfrentar o povo” e, em seguida, pediram a renúncia do mandatário.

Este fato é paradoxal porque os militares vinham sendo sistematicamente cortejados por Morales e seu governo, que lhes ajudaram financeiramente, lhes cederam espaço na administração do Estado — como na Aeronáutica —, aumentaram seus soldos e mantiveram excelentes relações com seus comandantes. O chefe militar atual, Williams Kaliman, inclusive, foi criticado por elogiar Morales, que os oficiais consideravam ser “seu presidente favorito”.

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Morales se reunia toda segunda-feira com a alta cúpula militar e participava com grande entusiasmo dos desfiles e atividades militares. O presidente demissionário também incorporou soldados a diferentes tarefas sociais do Estado, como a distribuição de títulos e programas de irrigação. O governo Morales também apoiava fortemente empresas militares, seguindo a concepção nacionalista de que o Exército é a coluna vertebral do desenvolvimento nacional.

Até mesmo no momento de renunciar, Morales e seu vicepresidente, Álvaro García Linera, evitaram recriminar os militares por sua falta de ação, apesar de criticarem “setores da polícia” que deixaram de atuar frente aos protestos populares.

Apesar da proximidade do governo recém-acabado com os uniformizados, também é certo que os militares se sentiam chateados, mesmo sem expressar publicamente, com a intenção de Morales de doutriná-los com uma ideologia de esquerda. Um exemplo disso foi a criação de uma Escola Anti-imperialista, curso obrigatório para todos os oficiais.

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A explicação mais importante para o comportamento dos militares nesta crise, no entanto, está no encarceramento dos comandantes das três Forças que dirigiram a repressão do levante popular que ocorreu em 2003 contra o então presidente Gonzalo Sánchez de Lozada. Os três militares foram os únicos condenados com penas severas, entre 10 e 15 anos, no julgamento de responsabilidades contra Sánchez de Lozada realizado durante o governo Morales.

À época, se dizia que esta sentença, fortemente defendida pelo presidente, inibiria os sucessores desses comandantes de voltar a aceitar ordens para tratar de questões internas, quando isso fosse necessário.

Distanciamento da polícia

Outra medida que pesou na conta de Morales durante esta crise foi seu distanciamento da polícia, algo que explica, em boa parte, o amotinamento policial nos dias mais recentes desta crise política. O governo ofendeu a polícia, não tanto por decisões próprias, mas devido às circunstâncias: a própria crise interna da instituição, que a levou a violar as expectativas que o presidente e a sociedade haviam depositado nela.

Os escândalos se acumularam, sendo o pior deles o envolvimento do general René Sanabria, ex-chefe da Força Especial da Luta contra o Crime, em um caso de narcotráfico. Em resposta, o governo teve que tirar do controle da polícia duas importantes tarefas: a concessão de cédulas de identidade e carteiras de motorista. Sabia-se que isso estava causando um mal estar dentro da polícia e, na época, chegaram a dizer que isso poderia se traduzir, mais a frente, em protestos que poderiam afetar a estabilidade política do país. O ferimento nas forças policiais é uma das razões por trás do comportamento sedicioso que a corporação adotou nas últimas semanas.