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Sem olhos no Chile: a história de Gustavo Gatica, atingido por balas de borracha nos dois globos oculares

'Dei meus olhos para que o Chile desperte', disse jovem de 21 anos a sua mãe; médicos ainda esperam salvar visão direita
Manifestação de apoio a Gustavo Gatica (no cartaz) em sua cidade, La Colina, na periferia de Santiago Foto: JORGE SILVA / REUTERS/10-11-2019
Manifestação de apoio a Gustavo Gatica (no cartaz) em sua cidade, La Colina, na periferia de Santiago Foto: JORGE SILVA / REUTERS/10-11-2019

SANTIAGO —  “Fora daqui, fora!”, gritavam furiosas as mais de 300 pessoas reunidas do lado de fora da Clínica Santa Maria quando um grupo das Forças Especiais dos Carabineiros, com uma dezena de rádio-patrulhas e carros blindados, começou a lançar gás lacrimogêneo e gás de pimenta na tarde do sábado 9 de novembro.

As tensões com a polícia se repetem há mais de um mês nos protestos no Chile , mas daquela vez a impotência e a indignação eram totais. Os manifestantes haviam se reunido ali para dar apoio a Gustavo Gatica Villarroel, um jovem de 21 anos, estudante do terceiro ano de Psicologia da Academia de Humanismo Cristão, que naquele momento enfrentava uma cirurgia decisiva. No dia anterior, em uma marcha na Praça Itália, no centro de Santiago, duas balas de borracha lançadas pelos carabineiros, a polícia militar, atingiram seus globos oculares. Ele ficou totalmente cego do olho esquerdo e com alta probabilidade de perder a visão do direito.

A denúncia se difundiu rapidamente pelas redes sociais, como um caso simbólico das 222 pessoas que ficaram feridas nos olhos pelo uso de balas de borracha na repressão policial. O número de lesões não tem paralelo no mundo, e escandalizou organismos como o Instituto Nacional de Direitos Humanos (INDH), uma entidade pública independente, e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

A Academia de Humanismo Cristão, onde Gustavo estuda, participou da convocação do ato do dia 9. Patricio Soto, um dos vice-reitores, disse que os disparos que atingiram o estudante devem ter sido lançados “de curta distância e diretamente no rosto”.

— Quem o fez teve a intenção de provocar um dano irreparável e, o que é pior, tinha a autorização para fazê-lo. Um policial disparou, mas [o presidente Sebastián] Piñera é o responsável político — disse Soto do lado de fora da clínica.

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O diretor-geral dos carabineiros, Mario Rozas, indicou que o autor do disparo foi identificado, mas sua identidade ainda é desconhecida.

— Estamos em uma situação de indignação, de raiva, mas sobretudo de busca de justiça: vamos impedir que essas situações fiquem impunes — disse Álvaro Ramis, reitor da Academia.

Os que estiveram na Praça Itália na sexta-feira 8 de novembro afirmam que a repressão policial foi particularmente violenta. Enquanto a maior marcha desde 25 de outubro tomava as ruas, o que se via na Avenida Vicuña Mackenna era um verdadeiro inferno, segundo profissionais da brigada de saúde organizada para ajudar os feridos.

O coordenador do grupo de 45 enfermeiros, médicos e paramédicos, Rodrigo Núñez, já havia expressado diante da Comissão de Direitos Humanos do Senado sua preocupação com o aumento de feridos por disparos à queima-roupa.

— Naquela sexta-feira, chegamos duas horas antes, e não nos enganamos — disse Núñez.

Os disparos da Forças Especiais se intensificaram logo depois do início da marcha, às 17h, e a esquina da Rua Reñaca com a Avenida Vicuña Mackenna foi um dos pontos mais conflitivos.

— Era como estar numa guerra, e a quantidade de feridos e pessoas com problemas respiratórios era desoladora. Tínhamos que mandar reforços o tempo todo.  Às 18h, já tínhamos atendido sete traumas oculares, 20 pessoas atingidas por balas de borracha em outras partes do corpo e um garoto atingido por uma bomba de gás lacrimogêneo que o deixou com queimaduras graves — disse  José González, de 28 anos, enfermeiro da Universidade Católica do Norte.

Às 18h30m, no entanto, o enfermeiro recebeu uma notícia que o marcará  para sempre: um jovem de 21 anos acabara de ser atingido nos dois olhos. Sangrava profusamente, e um homem o carregava para o ponto de atendimento médico porque ele não conseguia ficar de pé.

— Quando o vi chegar, soube que tinha que ser minha prioridade. Vinha sem os olhos, por seu rosto corriam lágrimas de sangue, e o choque o impedia de falar — disse González.

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Os socorristas conseguiram parar a hemorragia com compressas e estabilizar sua circulação e respiração com 750ml de soro intravenoso. Lavaram os olhos para ter a dimensão do dano.

— Uso lentes de contato — disse Gustavo Gatica antes de perder a consciência.

Sem tréguas na repressão, foi difícil levar Gustavo para o hospital. Os socorristas tiveram que pedir à Garra Blanca — torcida de futebol que atua como tropa de choque dos manifestantes — que blindassem a saída de Gustavo. Seis voluntários o levaram em uma maca, rodeada por outros seis manifestantes.

— No trajeto ele entrou em um choque respiratório complicado. A pressão subiu, e tivemos que ajudá-lo com um respirador — contou González, que pôs no jovem sua própria máscara com filtro.

Ao mesmo tempo, iam telefonando para o Samu de Santiago e hospitais que pudessem receber o jovem, mas todos estavam assoberbados. González se lembra de ter aberto a mochila de Gustavo: havia um caderno, um lápis e uma carteira da universidade.

Finalmente, às 19h15m, Gustavo foi levado por uma ambulância ao Hospital de Urgência Central, de onde foi transferido para a Clínica Santa María. A brigada médica costuma atender entre 30 e 50 pacientes por dia. Em 8 de novembro, foram 137, dos quais 12 tinham sofrido dano ocular.

Cartazes de apoio a Gustavo Gatica e de cobrança ao presidente Sebastián Piñera: até o dia 20, 220 pessoas foram atingidas nos olhos por balas de borracha Foto: RODRIGO ARANGUA / AFP
Cartazes de apoio a Gustavo Gatica e de cobrança ao presidente Sebastián Piñera: até o dia 20, 220 pessoas foram atingidas nos olhos por balas de borracha Foto: RODRIGO ARANGUA / AFP

Uma mensagem no grupo de WhatsApp do curso de Psicologia de Gustavo avisou os demais estudantes do que havia acontecido.

— Quando soube, meu mundo caiu — disse Norman Ríos, amigo de Gustavo. — Ele sempre foi combativo. Antifascista, anticapitalista e superantenado. Não tem medo de expressar sua raiva da polícia — contou em frente à clínica.

A vocação social de Gustavo Gatica vem da família. Morador de Colina, na região metropolitana de Santiago, ele é filho de Enrique e Prudencia, ambos professores. Seu irmão Enrique é professor de História e trabalha na Villa Grimaldi — centro de tortura durante a ditadura hoje transformado em museu — e na organização educativa Lekòl Popilè Conchalí.

Essa herança foi assumida por Gustavo como estudante de Psicologia. Sua professora de Praxis V e VI, Isca Leyton, lembra dele como um estudante responsável.

— É um garoto simpático e humilde, receptivo à crítica e às sugestões — disse.

O curso inclui um estágio de atendimento na qual um grupo de cinco estudantes, incluindo Gustavo, recebeu a incumbência de ir à comunidade Torres 2, em Peñalolén, para trabalhar com meninos e meninas.

— Ele estava supercomprometido com o aperfeiçoamento do atendimento, com a busca de ferramentas melhores e ações para contribuir para a comunidade. Notava-se que ele gostava muito, que queria plantar uma semente naquele espaço com essa atividade — disse a professora.

As aulas na universidade estão paradas desde o início dos protestos. A professora Leyton contou que as atividades seriam retomadas em 9 de novembro, mas, com Gustavo internado, os alunos não tinham cabeça para isso, porque “estão devastados”, sentindo-se “impotentes, com pena e raiva”.

O Colégio Médico do Chile foi o primeiro a denunciar que os disparos nos olhos estavam provocando níveis inéditos de cegueira.

— Quando, na primeira semana, fizemos a denúncia ao diretor dos carabineiros havia 29 pacientes com danos oculares graves e agora temos mais de 200, é uma tristeza e uma impotência tremenda — disse Patricio Meza, vice-presidente do Colégio.

A indignação pública fez com que Mario Rozas, o diretor dos carabineiros, anunciasse em 11 de novembro mudanças nos procedimentos de uso das escopetas antidistúrbios. Segundo ele, elas só seriam usadas “em ocasiões em que exista uma ameaça certa, um iminente ataque à propriedade pública ou privada”.

No dia seguinte, no entanto, na Praça Itália foram registrados dezenas de feridos por balas de borracha nas pernas e no abdômen, e ao menos dois com feridas nos olhos, segundo José González, da brigada médica. Um deles foi o estudante de Teatro Vicente Muñoz, que afirma ter sido atacado a uma distância de menos de dois metros por um efetivo dos carabineiros, quando deixava a manifestação com um grupo de colegas. Hospitalizado, ele corre o risco de perder o olho esquerdo.

— Isso é algo nunca visto na história da oftalmologia chilena e mundial. Nossos números mostram que temos ao menos 12 olhos cegos por dia, uma cifra escandalosa — disse Patricio Meza, do Colégio Médico.

Na terça-feira 19, depois que estudos da Universidade do Chile mostraram que as balas de borracha são compostas em 80% por elementos metálicos, os carabineiros anunciaram que só usariam essa arma "como uma medida extrema e exclusivamente para autodefesa quando houver um perigo iminente de morte".

Gustavo não corre  risco de vida, mas as visitas estão restritas. Ele foi submetido a duas novas cirurgias no olho direito, mas os médicos ainda não sabem se poderão salvar sua visão. Sua família mantém as pessoas informadas. A clínica abriu um livro para que todos possam deixar mensagens. Seus companheiros mais próximos da Academia de Humanismo Cristão puderam visitá-lo. Disseram à professora Isca Leyton que Gustavo quer voltar às aulas, reconheceu as vozes dos amigos e está otimista.

O INDH apresentou um pedido de investigação, assim como a família. No próprio hospital, Gustavo foi ouvido por promotores. Enrique Gatica disse ter perguntado ao irmão se queria transmitir alguma mensagem, e que ele pediu aos colegas que “continuem lutando” por justiça e pela dignidade do povo chileno.

— Dei meus olhos para que as pessoas despertem —  disse ele a sua mãe na clínica.