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‘Ser um Mandela não era popular’, conta neta do líder sul-africano

No Brasil para lançar livro de correspondências do avô, Zamaswazi fala ao GLOBO sobre legado do ícone da luta contra o Apartheid
Neta de Nelson Mandela, Zamaswazi Dlamini-Mandela organizou, ao lado da jornalista Sahm Venter, o livro 'Cartas da prisão', de Nelson Mandela Foto: Marcos Alves / Agência O Globo
Neta de Nelson Mandela, Zamaswazi Dlamini-Mandela organizou, ao lado da jornalista Sahm Venter, o livro 'Cartas da prisão', de Nelson Mandela Foto: Marcos Alves / Agência O Globo

SÃO PAULO - Quando Zamaswazi Dlamini-Mandel a nasceu, em 1979, seu avô, Nelson Mandela , estava havia 17 anos preso. A avó, Winnie Madikizela-Mandela, também passava longas temporadas na cadeia quando Zamaswazi era criança. Quando Mandela saiu da cadeia para a presidência da África do Sul , ela precisava marcar horário para vê-lo. Zamaswaki pôde conhecer melhor o avô ao organizar suas "Cartas da prisão" (648 páginas, R$ 84,90, editora Todavia), a primeira reunião da correspondência de Mandela, que abarca os 27 anos que ele passou encarcerado. Zamaswazi assina o prefácio do volume de cartas, que foi editado pela jornalista Sahm Venter, pesquisadora da Fundação Mandela.

Zawaswazi divulga o legado dos avós ao redor do mundo e também trabalha com moda. Ela veio ao Brasil lançar as Cartas da prisão e aproveitou para conversar com O GLOBO sobre sua relação com o avô, a luta antirracismo, os dilemas políticos sul-africanos e o papel social da moda.

Quando você nasceu, seu avô estava na cadeia. Como foi crescer sendo neta de Nelson Mandela?

Naquela época, embora meu avô fosse famoso no mundo todo, ser um Mandela não era popular. Foi um tempo difícil para minha família. Minha mãe e minha avó  se esforçavam para que nós, crianças, entendêssemos por que nós não tínhamos nosso avô por perto. Nossa vida familiar era diferente. Nós sofríamos batidas policiais no meio da noite e minha avó era presa com frequência. Muita gente, inclusive familiares, não queria contato conosco. Uma das consequências mais cruéis do Apartheid foi brutalizar as relações familiares, como a relação de meu avô com minha avó, com seus filhos e netos. Nós não fomos próximos, porque ele virou presidente logo que saiu da prisão e eu tinha que marcar horário para vê-lo. Ele era muito ocupado, o mundo todo o queria. É muito triste dizer isso, mas eu nunca o conheci de verdade. Ele dizia que não pertencia a nós, à família, mas ao mundo. Ele precisou sacrificar a vida familiar para servir ao país.

Mandela é lembrado por sua luta por paz e justiça e por sua habilidade de dialogar com seus adversários. Como o legado dele pode inspirar os líderes mundiais hoje?

Meu avô deixou muitos legados. Ele esculpiu um futuro para nós. Sempre admirei a habilidade dele de recusar a violência e se comportar com dignidade apesar das circunstâncias. Um dos colegas de prisão dele disse que só viu meu avô perder a cabeça duas vezes. Uma vez porque minha avó estava presa, na solitária, e ele não tinha notícias dela havia 18 meses. E a outra vez foi quando os livros dele desapareceram. Eu perderia a cabeça em muitas outras circunstâncias! Outro legado dele é o perdão. Ele foi capaz de perdoar o que fizeram como ele, com nossa família e nosso país.

Movimentos de combate ao racismo como o Black Lives Matter são desdobramentos da luta de Mandela?

Quando se aposentou da política, meu avô disse que nós deveríamos continuar a luta dele. Todos somos responsáveis pela criação de um mundo melhor. Eu aplaudo movimentos como o Black Lives Matter e todos aqueles que lutam contra o racismo. É incrível como os movimentos de juventude estão se fazendo ouvir. Meu avô estava disposto a arriscar sua vida pelo que acreditava e penso que ele ficaria muito feliz de nos ver continuando a luta dele.

O Congresso Nacional Africano (CNA), o partido de Mandela, está no poder desde 1994. Os brancos ainda ganham, em média, cinco vezes mais que os negros na África do Sul, que é um dos países mais desiguais do mundo. O CNA falhou no combate à desigualdade?

Os seres humanos falharam no combate à desigualdade, e alguns deles pertencem ao CNA. A democracia sul-africana é muito jovem, tem pouco mais de 20 anos. Precisamos de tempo para consertar mais de 200 anos de racismo. Mas, sim, as nossas lideranças falharam em muitos aspectos. Houve muito abuso de poder. Estamos enfrentando muitos problemas socioeconômicos, como desemprego e má qualidade dos serviços públicos. Precisamos ser mais cuidadosos na escolha de nossos líderes. Meu avô se preocupava muito com a possibilidade de voltarmos ao passado se não cuidássemos da liberdade que conquistamos com muita luta. Eu acredito que estamos virando uma página na África do Sul e espero que o novo presidente promova políticas de impacto na educação e geração de emprego e tenha uma postura diferente diante da corrupção.

Em fevereiro, Jacob Zuma renunciou à presidência após acusações de corrupção. O novo presidente Cyril Ramaphosa é lembrado como a escolha original de Mandela para sua sucessão. Você está esperançosa quanto à capacidade dele de lidar com os problemas sul-africanos?

Ramaphosa herdou muitos problemas e vai precisar trabalhar duro para resolvê-los. Será importante acompanhar quais decisões ele vai tomar para extinguir a corrupção e melhor os serviços públicos, que são muito impactados pela corrupção. Precisamos dar tempo a Ramaphosa. Meu avô era muito sábio e conseguia identificar boa lideranças. Acho que é por isso que ele escolheu Ramaphosa e por isso estou esperançosa. A missão dele é difícil, mas acho que ele pode nos ajudar a avançar. Os sul-africanos estão desapontados, desesperados quanto ao futuro. É importante que ele dê esperança ao país.

Você trabalha como moda. Qual a importância da moda nas lutas sociais?

Podemos, sim, usar a moda para causar impacto político e contribuir com uma causa. Minha avó usava a moda para marcar suas posições políticas. Ela combinava militância, tradição e sofisticação quando de vestia para ir a um julgamento ou liderar uma manifestação. Quando meu avô foi julgado, ela escolheu o figurino dele. Ela quis que ele usasse vestes tradicionais para que o juiz visse qual eram a cultura e a tradição dele. Ela ajudou meu avô a impactar o espaço político também pelo modo como ele se vestia. Quando minha avô morreu, as mulheres sul-africanas a o homenagearam usando preto e turbantes, que nós chamamos de “doek”. Foi uma maneira de tomar posição de mostrar a força e a união das mulheres.

Recentemente, houve muita polêmica no Brasil sobre o uso de turbantes e adereços africanos por mulheres brancas e discussões sobre apropriação cultural. Qual a sua opinião?

Essa discussão é saudável. O debate ajuda as pessoas a ver as coisas de outra perspectiva. Mas devemos evitar o sectarismo. Devemos nos lembrar de nossos objetivos comuns. Não importa se minhas irmãs são africanas, latinas ou brancas. Como mulheres, nós queremos as mesmas coisas. Se alguém quer fazer parte do movimento, seja parte do movimento, não importa a cor da pele.