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Síria entra no 11º ano da guerra sem acordo de paz e fatiada entre potências estrangeiras

Mais de 387 mil pessoas foram mortas desde o início do conflito e cerca de 5,6 milhões estão refugiadas em outros países
Criança síria posa sobre pilha de projéteis neutralizados em ferro-velho nos arredores de Maaret Misrin, na província de Idlib Foto: AAREF WATAD / AFP/10-03-2021
Criança síria posa sobre pilha de projéteis neutralizados em ferro-velho nos arredores de Maaret Misrin, na província de Idlib Foto: AAREF WATAD / AFP/10-03-2021

Mais de 5,6 milhões de refugiados, 6,7 milhões de deslocados, 387 mil mortos, 200 mil desaparecidos e US$ 1,2 trilhão em perdas econômicas são o custo da guerra na Síria até o momento, de acordo com dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), do Observatório Sírio dos Direitos Humanos (EBC) e da ONG Visão Mundial. Desde 2011, o regime de Bashar al-Assad e grupos rebeldes se enfrentam violentamente no território sírio, na maior parte do tempo amparados por potências estrangeiras.  Um cessar-fogo está em vigor desde o ano passado , mas o fim do confronto ainda é uma realidade distante, afirmam especialistas ouvidos pelo GLOBO.

— Em várias partes da Síria já não há mais conflito armado, mas, como também não há um acordo político entre as partes beligerantes, a situação está bloqueada — afirma Fabrizio Carboni, diretor regional do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) para o Oriente Médio. — Em Homs, que foi uma dos epicentros da guerra, os ataques pararam há quatro ou cinco anos, mas, toda vez que vou para lá, tenho a sensação de que os conflitos terminaram ontem, porque nada mudou. Os bairros antigos continuam totalmente destruídos.

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Estimativas da organização Human Rights Watch (HRW) apontam que mais de 80% dos 16,91 milhões de habitantes da Síria hoje vivem abaixo da linha da pobreza, com 60% das crianças passando fome diariamente, segundo a ONG britânica Save the Children. O preço da cesta básica é 33 vezes mais caro do que a média dos cinco anos anteriores à guerra, de acordo com a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO).

Cidade é o último grande núcleo rebelde contra o governo de Bashar al-Assad. Manifestação ocorreu nesta segunda-feira (15). Em uma década, morreram 380 mil pessoas
Cidade é o último grande núcleo rebelde contra o governo de Bashar al-Assad. Manifestação ocorreu nesta segunda-feira (15). Em uma década, morreram 380 mil pessoas

Em 2019, o próprio ministro da Eletricidade afirmou que 70% das subestações da rede elétrica e linhas de abastecimento de energia estavam fora de serviço.

— A economia da Síria foi devastada por anos de guerra e décadas de corrupção desenfreada — afirma Dareen Khalifa, analista sênior do International Crisis Group. — Infraestrutura vital e bairros urbanos inteiros foram destruídos como parte de uma estratégia de guerra deliberada, aplicada por Damasco, bem como por seus aliados russos, para esmagar oponentes. Mas sanções impostas pelos EUA também estão impedindo que outros países invistam na Síria, o que alimenta a miséria dos mais vulneráveis, que são os sírios comuns, sem atingir nenhum objetivo político declarado.

Mapa da Síria no aniversário de 10 anos da guerra civil Foto: Arte O Globo
Mapa da Síria no aniversário de 10 anos da guerra civil Foto: Arte O Globo

Hoje, a Síria compreende quatro zonas distintas de influência, cada uma apoiada por uma potência estrangeira. Grande parte do país, incluindo as principais cidades, são controladas pelo regime de Assad, com apoio da Rússia e do Irã. Os curdos, apoiados pelos EUA e aliados, controlam o Nordeste, onde estão concentradas as maiores reservas de recursos naturais da Síria, especialmente gás e petróleo. Rebeldes apoiados pela Turquia controlam uma área a oeste de Aleppo, mais a faixa de fronteira que vai de Tel Abyad até Ras al-Ayn, no Nordeste. O Noroeste é controlado por um grupo jihadista chamado Hayet Tahrir al Sham (HTS, ou Organização pela Libertação do Levante).

— Há um cessar-fogo de fato em todo o país desde março de 2020, quando a Turquia interveio militarmente para impedir uma ofensiva de um ano apoiada pela Rússia em Idlib, no Noroeste da Síria. No entanto, e apesar da cessação das hostilidades ao longo do ano passado, o status quo é muito frágil e os cessar-fogo são violados diariamente por quase todas as partes — afirma Khalifa.

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Para Fabrizio Carboni, além das perdas materiais, que são evidentes, o conflito também causa danos invisíveis aos sobreviventes, sobretudo psicológicos. Em um país onde mais da metade da população tem menos de 25 anos, uma pesquisa realizada pelo CICV com 1.400 jovens sírios revela que 54% disseram sofrer de distúrbios do sono, 73% de ansiedade, 56% de depressão, 45% de solidão e 62% de frustração e angústia.

Juventude perdida

O relatório ainda afirma que quase um em cada dois jovens (47%) perdeu um parente próximo ou amigo no conflito, um em cada seis contou que pelo menos um de seus pais foi morto ou ficou gravemente ferido, 12% ficaram eles mesmos feridos nos confrontos, e 62% disseram que precisaram fugir de casa.

— Uma geração de jovens sírios está pagando um preço muito alto pela guerra— afirma Carboni. — À medida que se tornam adultos, eles aspiram ao mesmo que gerações anteriores: querem trabalhar, levar uma vida segura, poder cuidar da família. Mas não têm as mesmas oportunidades

Na Síria, que já teve uma taxa de matrícula de quase 93%, hoje quatro em cada dez jovens tiveram que interromper sua educação porque foram obrigados a fugir, de acordo com o relatório “Uma década de perdas”, da organização Visão Mundial. Cerca de 2,4 milhões de crianças também estão sem estudar, enquanto um terço das escolas do país foi destruído ou confiscado por combatentes, segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).

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Da mesma forma, o sistema de saúde do país está em frangalhos: em meio à pandemia da Covid-19, apenas 58% dos hospitais continuam funcionando, e com um número bastante reduzido de profissionais de saúde, já que 70% deles fugiram da Síria na última década, segundo o Acnur.

— Depois de uma década de conflito, em meio a uma pandemia global e enfrentando um fluxo constante de novas crises, a Síria saiu da primeira página — disse o secretário-geral da ONU, António Guterres, em uma entrevista coletiva na última quarta-feira. — E ainda assim a situação continua sendo um pesadelo vivo.