Mundo Guerra na Ucrânia

Sob ataques diários da Rússia, russófona Kharkiv resiste a cerco e prova que língua não é nacionalidade

Sem conseguir conquistar cidade rapidamente, a mais atingida depois de Mariupol, tropas russas investem em tática de terra arrasada e bombardeiam áreas residenciais, fazendo com que corpos se acumulem nos necrotérios
Escola bombardeada em Kharkiv: rotina dramática Foto: SERGEY BOBOK / AFP
Escola bombardeada em Kharkiv: rotina dramática Foto: SERGEY BOBOK / AFP

KHARKIV, Ucrânia — As paredes tremeram e o estrondo foi brutal. Em seguida, um pedaço do teto caiu e o fogo começou. Nina Verloka e os dois filhos estavam na cozinha, prontos para jantar. Diante dos olhos atônitos e desesperados de Nina, o furioso bombardeio, um dos muitos desse dia em Kharkiv, matou os jovens e feriu a mulher, de 41 anos. Em um instante, Nina perdeu tudo. Em uma cama de hospital da segunda cidade da Ucrânia, agora mostra no celular a fotografia de uma família muito jovem: um adolescente sorridente e uma jovem de 19 anos de rosto doce e que sorri para a câmera.

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Nina está furiosa. Furiosa com Vladimir Putin, com as tropas russas, com a capacidade de apenas um homem de levar catástrofe e destruição para sua vida e para toda a Ucrânia.

— Tínhamos um país maravilhoso, com gente boa. E ele diz que quer nos libertar, nos proteger? De quê? De quem? Por que nos fazem isso? Não entendo — lamenta.

Kharkiv, no Leste de Ucrânia, com 1,5 milhão de almas antes da invasão e situada a 40 km da fronteira com a Rússia, foi um dos primeiros alvos da invasão das tropas de Putin. Entraram na cidade com veículos de artilharia Tigr, mas foram eliminados ou capturados rapidamente. Desde então, tratam de assediá-la. A cidade está sob fogo constante e implacável. Noite e dia.

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A estratégia russa passou a ser bombardear e disparar com fogo de artilharia, e de forma indiscriminada, zonas residenciais, como no edifício de Nina. É uma prática de desgaste, de terra arrasada, que o Kremlin passou a aplicar em outras cidades ucranianas.

Hoje, Kharkiv é a segunda cidade mais castigada pelos ataques russos, atrás de Mariupol , dizem as autoridades locais. É alvo de cerca de 80 ataques por dia.

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No mesmo hospital de Nina chegam, a cada dia, pelo menos dez feridos pelas explosões. É uma tormenta que atinge a cidade com força desde que Putin lançou sua "operação militar especial" para "desnazificar" e "desmilitarizar" a Ucrânia.

Muitos adultos morreram, diz Olena Polashuk, diretora médica do centro sanitário, mas também morreram, no hospital número 4, três crianças desde o início da guerra.

— O número de pessoas que nos trazem é assustador. É emocionalmente devastador — diz Polashuk.

Não param de chegar alimentos doados, remédios, roupas.

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Enquanto isso, no instituto forense central não há mais sacos para cadáveres. Os corpos são deixados no pátio em três filas: aqueles embalados em sacos pretos, os cobertos com plásticos e uma longa coluna de cadáveres envoltos em toalhas, lençóis ou sem nada. Há uns mil corpos por ali. E existem outros três necrotérios na cidade.

O últmo a chegar aqui foi um homem sem rosto, com a camisa aberta. Os que estão à vista usam roupas civis. Oficialmente, ao menos 300 pessoas morreram na região de Kharkiv desde o início dos ataques. Mas as autoridades reconhecem que a cifra deve ser muito maior. O conflito armado, afinal, não mudou o fato de que pessoas ainda morrem por doenças e acidentes, dizem os funcionários do necrotério.

A vida continua

O centro histórico de Kharkiv, conhecida como a capital intelectual da Ucrânia, está praticamente pulverizado. O museu de arte, com sua coleção de pintores russos como Ilia Repin e Ivan Shishkin, não teve tempo de pôr a salvo seus tesouros. A biblioteca Korolenko, lar de manuscritos valiosos, foi vítima dos bombardeios.

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Em Kharkiv, os ataques atingiram pelo menos 400 edifícios altos de apartamentos, segundo as autoridades. E muitos dos que ainda estão inteiros já não contam com infraestrutura básica: água, gás, electricidade.

Mais de 700 mil personas deixaram a cidade como podiam, em trens, carros... Tudo está fechado. Somente algumas farmácias e supermercados estão abertos ao público, que leva o que pode e faz filas constantes. É quase impossível encontrar carne. Alguns vivem no metrô, convertido em refúgio. Outros, nos porões da cidade. Mas, a cada manhã, muitas das ruas são varridas e limpas, muitas lixeiras recebem novas sacolas para recolher o lixo. A vida continua. Ainda que cerrem os punhos e mordam a língua, as pessoas se acostumam com tudo. Até com os bombardeios constantes.

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Nos primeiros dias, surgiram os saqueadores — e os vizinhos e grupos de milicianos os ataram aos postes. Na segunda-feira, detiveram um saqueador que supostamente havia roubado remédios e que se escondia no metrô.

Dmitri Kravchenko estava sentado em seu posto de guarda em uma fábrica quando foi atingido por estilhaços de um ataque. Foi há três dias, e ele ainda não sabe se vai perder o olho. Ele está coberto por venda, e tem cicatrizes no rosto e no pescoço:

— [Putin] diz que somos nazistas, sabe? Também [são] as crianças mortas pelas bombas…

Em Kharkiv, como em muitas outras partes da Ucrânia, especialmente no Leste, a grande maioria da população fala russo.

Em 2014, após os protestos que derrubaram o presidente pró-Rússia Viktor Yanukovych e a invasão russa da Península da Crimeia (que o Kremlin acabou anexando), tumultos também eclodiram em Kharkiv, como nas regiões de Donetsk e Luhansk. Manifestantes apoiados por Moscou e até mesmo pessoas da Rússia proclamaram a "República Popular de Kharkiv" lá e tomaram a sede do governo regional. As forças do Executivo a recuperaram logo.

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Kharkiv, uma vez vista como uma cidade com simpatias pró-Rússia, mudou isso. A recepção de mais de 100 mil deslocados internos das áreas separatistas pró-Rússia de Donetsk e Luhansk também mudou a paisagem, e a cidade consagrou sua guinada para o Ocidente, como o resto da Ucrânia.

Ao invadir a segunda maior cidade do país, Putin talvez tenha pensado que seria um passeio tranquilo, e que os cidadãos abririam as portas para as tropas russas, com seus perturbadores Z brancos pintados nos tanques.

Enganou-se. Também em Kharkiv, a língua não está ligada à identidade. E a cidadania que permaneceu resiste sob o granizo, diz Kravchenko.

— Eles não vão passar — exclama em espanhol e com o punho erguido.

O grito antifascista da Guerra Civil Espanhola, que se tornou o lema dos 35 mil voluntários das Brigadas Internacionais que viajaram para a Espanha de mais de 80 países para defender seu governo legal, é constantemente repetido na Ucrânia contra Putin e suas tropas.

No hospital número 4, no quarto de Nina Verloka, outras cinco mulheres feridas por bombardeios a escutam atentamente. Poleshuk, a diretora médica do centro, a observa:

— A guerra não é um país, é a história de cada pessoa. É cada um de nós.