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Sob coronavírus, Itália comemora 75 anos da liberação do nazifascismo com cenário de pós-guerra

Pandemia matou mais civis na região da Lombardia do que os bombardeios da Segunda Guerra em Milão; PIB deve cair 15% no primeiro semestre deste ano, e um terço dos trabalhadores pediu ajuda para sobreviver
Moradores do bairro de Garbatella em Roma se beijam no momento em que italianos foram para as janelas e balcões cantar "Bella Ciao", hino da Resistência Foto: TIZIANA FABI / AFP
Moradores do bairro de Garbatella em Roma se beijam no momento em que italianos foram para as janelas e balcões cantar "Bella Ciao", hino da Resistência Foto: TIZIANA FABI / AFP

ROMA — A extensão do cataclisma provocado pelo novo coronavírus na Itália ainda não é possível de ser mensurada, mas os números preliminares mostram um cenário comparável ao de um pós-guerra . O país, um dos mais atingidos pela Covid-19 , comemora neste sábado os 75 anos de liberação do nazifascismo olhando o exemplo do passado para tentar projetar o futuro.

O 25 de abril é a data de nascimento da democracia italiana após mais de duas décadas da ditadura fascista de Benito Mussolini, que transformou a Itália em um dos protagonistas da Segunda Guerra Mundial . Aquele dia,  em 1945, marcou a vitória da Resistência e o fim da ocupação nazista da Itália — o conflito terminaria oficialmente meses depois com a rendição do Japão.  Lembrada sempre com polêmica entre direita e esquerda —  e muitas vezes dentro da própria esquerda, por causa de brigas entre diferentes grupos e partidos sobre quem foi mais antifascista —  a comemoração neste ano, com o país sob quarentena desde 10 de março, será a primeira a ser feita virtualmente.

Feriado nacional italiano, que comemora o fim da ocupação nazista na Segunda Guerra Mundial, é comemorado com romanos cantando 'Bella Ciao' e Hino Nacional nas janelas
Feriado nacional italiano, que comemora o fim da ocupação nazista na Segunda Guerra Mundial, é comemorado com romanos cantando 'Bella Ciao' e Hino Nacional nas janelas

Um grupo de artistas, intelectuais e instituições da sociedade civil organizou uma live no Facebook —  com, entre outras coisas, o canto de “Bella Ciao”, hino contra o fascismo — e ainda criou uma campanha para arrecadar 300 mil euros. O dinheiro será destinado à Caritas e à Cruz Vermelha, empenhadas na luta contra o coronavírus e seus efeitos sociais.

Desde a eclosão da pandemia, no mês passado, muitos na Itália fazem analogias entre o sentimento atual e aquele de 75 anos atrás protagonizado pela Resistência italiana, sobretudo pela necessidade de unidade nacional. As comparações foram feitas por membros do governo e também pelo presidente da República, Sergio Mattarella (com função decorativa e sem participação no Executivo), que lembrou recentemente que o espírito daquela época deve influenciar a atual geração no pós-pandemia.

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Na última semana, o comissário extraordinário para a Gestão do Coronavírus, Domenico Arcuri, comparou os mortos da Covid-19 com as vítimas da guerra: entre 11 de junho de 1940 e 1º de maio de 1945 morreram em Milão nos bombardeios do conflito cerca de dois mil civis. Em dois meses, na região da Lombardia (a mais atingida, cuja capital é Milão), faleceram quase 13 mil civis.

— A História não se repete, a História se repete. A História é previsível, a História é imprevisível. Qualquer um pode dizer o que quiser, mas não me parece correto fazer uma analogia entre uma guerra e uma pandemia. Durante a guerra, não existia uma União Europeia e a Itália era um país ocupado. A tragédia atual é de outra natureza —  afirmou ao GLOBO Emilio Gentile, o principal historiador italiano sobre o período fascista.

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Ele ressalta que este será um 25 de abril —  data geralmente marcada por atos em diversas cidades — de “reclusão nacional”:

—  Hoje muitos arriscam a vida na luta contra a pandemia, assim como na guerra muitos arriscaram para restituir ao país a liberdade e a democracia.

Após reduzir o alto de número de mortes (quase 26 mil) e desafogar o sistema de saúde, em especial da região Norte, a Itália começa a contar as perdas de quase dois meses de estagnação e a preparar a reabertura. O primeiro-ministro Giuseppe Conte ficou de anunciar até amanhã um cronograma da retomada, oficialmente prevista para o dia 4 de maio. A abertura será gradual ao longo do próximo mês, mas ainda há muita indefinição, como por exemplo sobre o funcionamento do transporte público.

O país foi pioneiro ao decretar o confinamento de toda a população e deverá ser o mais afetado economicamente na Europa. Segundo projeção do Fundo Monetário Internacional (FMI), a redução do PIB italiano no primeiro semestre deste ano deve chegar a 15%, nível de economia de guerra, a queda mais acentuada entre os países ricos.

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Terceira economia da União Europeia, a Itália terá pela frente o seu maior desafio desde a Segunda Guerra: um a cada dois trabalhadores (um total de 23 milhões) solicitou ajuda a um dos programas lançados pelo governo para socorrer a população durante a pandemia.  Estima-se que a pobreza seja uma ameaça real para 10 milhões dos 60 milhões de italianos, em especial no Sul, historicamente mais atrasado e onde os efeitos do confinamento já são sentidos desde meados do último mês. Muitos na região passaram a viver de doações. Um vídeo gravado em Bari, de um casal desesperado que gritava na rua por não ter dinheiro para comer, viralizou.

Outro aspecto muito discutido nos últimos dias é que a crise provocada pelo coronavírus fortalecerá as máfias se o governo não apertar os sistemas de controle, fenômeno registrado em outros momentos de emergência no passado, como nos terremotos que atingiram o centro do país na última década.  Procuradores antimáfia alertaram que o cenário é propício para o crime organizado: com a falta de liquidez, o desemprego e a quebra de muitos pequenos e médios negócios, a máfia encontra uma boa oportunidade para expandir sua atuação na economia formal (para lavar dinheiro) e recrutar novos quadros através do socorro financeiro.

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Criada no Sul da Itália no século XIX, a máfia também se fortaleceu após a Segunda Guerra. As tropas americanas que desembarcaram na Sicília, em 1943, conviveram amistosamente com os clãs mafiosos, que se tornaram aliados na batalha contra o nazifascismo.

Descrente sobre as analogias históricas, o historiador  Emilio Gentile não é otimista. Acha pouco provável que os políticos italianos aprendam algo com a crise, mas pensa diferente em relação ao povo:

—  Espero realmente que os italianos consigam tirar algum aprendizado do sacrifício feito por tantos médicos, profissionais de enfermagem e por tanta gente que morreu na solidão. Tomara que a tragédia gere uma duradoura solidariedade coletiva.