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Talibã toma terceira maior cidade afegã, a 11ª capital provincial sob seu controle; EUA preparam retirada de americanos

Lideranças do grupo dizem ter tomado a segunda maior cidade do país, Kandahar, mas não há confirmação oficial; representantes do governo americano afirmam defender a 'segurança e estabilidade' do Afeganistão
Soldado do Talibã vigia entrada da cidade de Ghazni, no Afeganistão, a décima província capturada pelo grupo extremista em uma semana Foto: - / AFP
Soldado do Talibã vigia entrada da cidade de Ghazni, no Afeganistão, a décima província capturada pelo grupo extremista em uma semana Foto: - / AFP

DOHA e CABUL — O Talibã tomou nesta quinta-feira as cidades de Ghazni e Herat, passando a controlar 11 das 34 capitais provinciais do Afeganistão, e está perto de capturar a segunda maior cidade do país, Kandahar. O grupo extremista, que descartou uma suposta proposta de partilha de poder apresentada pelo governo afegão, está agora a apenas 150 km da capital Cabul, à medida que os combates na região se intensificam a duas semanas da conclusão da retirada dos militares dos EUA e de seus aliados da Otan, quase 20 anos após o início da guerra mais longa da história americana.

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Diante da escalada da guerra, Washington ordenou que todos seus cidadãos civis deixem o Afeganistão imediatamente em voos comerciais. Em um comunicado, a embaixada do país em Cabul alertou que, "diante das condições de segurança e equipe reduzida", sua capacidade de prestar serviços aos americanos é "extremamente limitada", inclusive na capital.

No dia 27 de abril, os EUA já haviam retirado os funcionários não essenciais de sua missão em Cabul. Agora, o país decidiu remover mais um número "significativo" de funcionários que continuam na embaixada. A operação terá apoio de 3 mil soldados que serão enviados ao país, o que resultará no reforço temporário do contingente militar americano já nas próximas 24 horas.

Em conversa com o presidente Ashraf Ghani nesta quinta-feira, os secretários de Estado e Defesa afirmaram "permanecer investidos na segurança e estabilidade do Afeganistão, diante da violência do Talibã", e que a redução da presença de civis americanos no país se deve à "situação de segurança em curso". Os representantes do governo americano ainda se comprometeram a manter uma forte relação de segurança e diplomacia com o Afeganistão, mesmo depois da retirada dos militares.

O Reino Unido também anunciou, nesta quinta-feira,  o envio excepcional de 600 militares ao Afeganistão para "apoiar a presença diplomática em Cabul, ajudar os britânicos a saírem do país e apoiar a realocação de afegãos que arriscaram suas vidas servindo ao nosso lado". Na sexta-feira, o governo britânico havia ordenado que todos seus cidadãos saíssem imediatamente do país.

Os serviços de Inteligência americanos estimam que o grupo extremista poderá cercar Cabul entre 30 e 60 dias e tomá-la em três meses. Com a aproximação do prazo estipulado pelo presidente Joe Biden para a retirada dos militares americanos, em 31 de agosto, o grupo tomou o controle de cerca de dois terços do país, forçando cerca de 400 mil pessoas a deixarem suas casas .

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Em um acordo firmado com os EUA em 2020, ainda no governo de Donald Trump, o Talibã concordou em não atacar as forças estrangeiras durante a retirada — em troca, comprometeu-se a não deixar o país ser usado para o terrorismo internacional. As negociações de paz com o governo afegão, realizadas no Qatar, contudo, estão empacadas há meses.

Segundo a AFP e a Al-Jazeera, o governo afegão teria oferecido ao grupo fundamentalista nesta quinta a partilha de poder em troca do cessar-fogo, algo não confirmado por Cabul e cujos detalhes também não são claros. À Reuters, um porta-voz do grupo disse não ter conhecimento da proposta, mas a descartou prontamente:

— Nós não aceitaremos qualquer oferta desse tipo porque não queremos firmar uma parceria com o governo no comando de Cabul. Não ficaremos nem trabalharemos por sequer um dia com ele — disse Zabihullah Mujahid.

À noite, um outro porta-voz do grupo declarou à Al-Jazeera que, apesar dos combates, "a porta para uma via política não será fechada".

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Representantes de países que participaram de conversas em Doha, como EUA e China, fizeram um apelo nesta quinta-feira para que o processo de paz seja acelerado "como algo de máxima urgência", e também defenderam um cessar-fogo imediato. Os países também se comprometeram a ajudar na reconstrução assim que um acerto político "viável" seja atingido, segundo comunicado emitido ao final da reunião

Onze capitais

Herat, a terceira maior cidade do país, perto da fronteira com o Irã, caiu sob controle do grupo fundamentalista após intensos confrontos, afirmaram residentes e jornalistas locais. Citando lideranças do Talibã, as agências AFP e AP afirmam que Kandahar, segunda maior cidade do Afeganistão e considerada uma "capital informal" do grupo, também foi dominada, mas não há confirmação oficial. A milícia diz ter assumido o controle da prisão central, libertando os detentos, além do escritório do governador da província e o quartel das forças de segurança.

O avanço nas duas cidades é o mais significativo para a ofensiva, que nesta quinta capturou Ghazni após intensos combates com as forças do governo. A importante região no Sul do país fica na rota entre Kandahar e Cabul, cujas vias de acesso estão tomadas por pessoas que fogem de outras regiões.

Os extremistas que entraram em Ghazni tomaram a maioria dos edifícios governamentais, incluindo a casa do governador e a sede da polícia. Também soltaram centenas de prisioneiros da prisão provincial, entre eles vários de seus combatentes. À agência EFE, o subchefe do Conselho Provincial, Amanullah Kamrani, disse que ainda há algumas áreas de confronto ao Leste da cidade.

Em seu Twitter, o porta-voz do Talibã, Qari Yusuf Ahmadi, disse que "dezenas de soldados morreram e um grande número se rendeu”. Afirmou também que o grupo extremista deu um "passe de segurança" para que as autoridades locais pudessem chegar a Cabul, a primeira vez em que confirmaram abertamente a criação de um corredor do tipo. Segundo a Al-Jazeera, o governador provincial foi preso logo após deixar a cidade por "se render sem resistência".

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O grupo extremista também afirma ter capturado as capitais de Nimroz e Farah, no Oeste do país, Jowzjan, Simangan e Sar-e-Pol, no Noroeste, e Baghlan, Takhar, Badakhsahn e Kunduz, no Nordeste. Há ainda combates em nove das 34 províncias afegãs, entre elas Badghis, no Noroeste. Já em Lashkar Gah, capital da provícia sulista de Helmand, a sede do governo teria sido capturada.

Segundo o balanço diário do Ministério da Defesa do país, morreram 217 combatentes do Talibã e outros 108 ficaram feridos nas últmas 24 horas. De acordo com a ONU, mais de mil civis foram mortos no último mês.

O Talibã esteve no comando do Afeganistão entre 1996 e 2001, quando os EUA invadiram o país nas semanas seguintes ao 11 de Setembro, dando início à guerra mais longa da História americana. À época, Washington argumentava que o grupo extremista dava abrigo a Osama Bin Laden, o fundador da al-Qaeda e responsável pelos ataques.

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Preocupações nas fronteiras

Nem mesmo há 20 anos, contudo, o grupo controlava todo o Norte do afegão, algo que dá sinais de estar determinado a fazer antes de se dirigir a Cabul. A maior parte das capitais provinciais na região já está sob seu controle, com a exceção de Mazar-e-Sharif, que está cercada.

O presidente Ashraf Ghani, portanto, volta sua atenção total para proteger a capital e tenta orquestrar uma contraofensiva com o apoio de grupos paramilitares e senhores da guerra para fazer frente aos ataques em áreas urbanas. Antes da fase atual dos combates, o Talibã já havia assumido o controle de dezenas de distritos ao redor do país, majoritariamente áreas rurais onde as forças de segurança não têm tanta penetração.

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Pressionado pela escalada da violência, Biden disse na terça-feira que não se arrepende da decisão de retirar as tropas americanas e disse que os líderes afegãos devem lutar por seu país. A possibilidade de o grupo extremista voltar a retomar o poder é vista com preocupação doméstica e internacionalmente. Nos países vizinhos, o aumento dos confrontos e do fluxo de refugiados é visto com apreensão.

Postos na divisa com o Irã e Paquistão passaram a ser controlados pelo grupo, servindo como uma forma adicional de receitas para financiar os ataques, enquanto a Rússia anunciou que dará US$ 1,1 milhão para o Tajiquistão construir um novo posto em sua fronteira.

No Ocidente, França, Holanda, Suíça e Alemanha anunciaram que vão suspender as extradições de imigrantes em situação irregular para o Afeganistão. Berlim, que orientou todos os seus cidadãos em solo afegão a deixar o país, também disse que não fornecerá qualquer apoio financeiro a Cabul se o Talibã voltar ao poder e implementar a lei islâmica.