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Trinta anos depois, líder estudantil chinesa vê Massacre da Praça da Paz Celestial como 'uma ferida da História'

Wang Chaohua diz que protestos eram para que voz popular fosse ouvida, 'segundo a Constituição' do país, e reflete sobre inquietação na China em 1989 e hoje
Manifestantes na Praça da Paz Celestial no dia 2 de junho de 1989 Foto: AFP/ Catherine Henriette
Manifestantes na Praça da Paz Celestial no dia 2 de junho de 1989 Foto: AFP/ Catherine Henriette

RIO - Quando os protestos na Praça da Paz Celestial começaram em abril de 1989, Wang Chaohua tinha 37 anos e era uma estudante de pós-graduação de literatura chinesa na Academia Chinesa de Ciências Sociais. Mais velha do que a maioria dos líderes das manifestações, ela viveu aqueles eventos com uma grande sensação de libertação.

Sua vida também passou por transformações profundas a partir dali. Subitamente, ela se viu na lista dos 21 estudantes mais procurados de Pequim. Nove meses depois do massacre, ocorrido em 4 de junho, deixou o país natal, para nunca mais voltar. Estabeleceu-se em Los Angeles, onde fez doutorado sobre o intelectualismo chinês.

Hoje, atua como pesquisadora independente na Califórnia, especializada na China contemporânea. Em 2011, tentou ir à Hong Kong, mas não saiu do aeroporto: “Fui informada de que era uma ameaça à segurança nacional e posta no primeiro avião”. Em entrevista exclusiva ao O GLOBO, ela reflete sobre por que se insurgiu e como vê a China contemporânea, incluindo a possibilidade de outra revolta acontecer hoje.

O que a senhora pensa, hoje, que a motivou a protestar há 30 anos?

Resumidamente, os manifestantes exigiam direitos políticos constitucionais — sobretudo, o de ser ouvido. A exigência de diálogo estava no ar havia mais de dois anos. O Congresso do Partido Comunista em 1987 colocava a proposta de que cada nível de governo —  provincial, estadual e nacional —  deveria começar esse tipo de diálogo, em que se ouviria a sociedade. Mesmo assim, o diálogo sempre foi de cima para baixo, o governo decidia quem podia conduzi-lo. Entendíamos que o governo deveria reconhecer um diálogo entre iguais, não que viesse nos dar lições. E essa exigência de um diálogo franco entre iguais era algo que não podiam aceitar.

E o que desencadeou os protestos?

Todos os protestos na Praça da Paz Celestial em 1989 começaram no dia 15 de abril, com a morte de Hu Yaobang, ex-secretário-geral do Partido Comunista Chinês que fora retirado do cargo em 1987. As ordens oficiais era para que os estudantes o homenageassem em seus respectivos campi, mas a ordem foi desrespeitada para fazer uma vigília por ele. Dias depois, em 18 e 20 de abril, os estudantes já estavam reunidos perto do complexo da Cidade Proibida, xingando o primeiro-ministro Li Peng.

Por que os estudantes ficaram tão envolvidos com a morte de Hu Yaobang? E por que atacavam o premier?

Hu foi tirado do cargo em janeiro de 1987 em função de protestos estudantis em Xangai e em outras províncias, em dezembro de 1986. O movimento provocou um desgaste interno no partido que o forçou a sair. Mas a saída deixou a impressão de que ele perdera o posto em retaliação aos protestos, como se quisessem usá-lo como bode expiatório para as manifestações estudantis. Depois, em 1987, houve uma mudança de liderança. Zhao Ziyang havia sido primeiro-ministro desde 1980 e estabelecido um boa reputação. Apesar disso, os membros mais velhos decidiram que seu substituto seria Li Peng, que era filho de um antigo revolucionário, mas não tinha grande apoio popular.

Essas coisas deixaram a impressão de que a voz popular jamais seria ouvida, de que a política da China sempre seria decidida por pessoas mais velhas, de 80 e tantos anos. Uma das principais demandas era de que a política fosse orientada pela Constituição, ao invés de ser resolvida por poucos políticos muito velhos, os anciões do partido, chamados “eternos”. Três dias depois da morte de Hu, estudantes já protestavam contra o premier, porque ele fora indicado pelos mais velhos, não fora testado nem eleito por voto popular.

Como eram os sentimentos entre os manifestantes?

Os protestos duraram quase dois meses. Devido ao enorme apoio popular, os estudantes tinham ampla convicção de que  os protestos eram totalmente justificados. Isso gerava uma abertura na sociedade. No começo dos protestos, por exemplo, os estudantes propuseram o diálogo por meio de uma nova união estudantil, que estava fora do controle oficial. Havia a união oficial dos estudantes de Pequim e a nossa, que era autônoma. Tínhamos o apoio mais amplo possível, então entendíamos que as autoridades, particularmente o Congresso Nacional do Povo e o Executivo, deveriam responder politicamente, ao invés de oferecer alguma promessa vazia.

Quando começaram as greves de fome, no dia 13 de maio, começaram a haver protestos diários, por cinco ou seis dias, até a lei marcial ser declarada, no dia 20. Depois da lei marcial, os anciões do partido agiram para controlar, por exemplo, a Agência Central de TV, onde os jornalistas mais jovens se rebelavam contra os mais velhos. Eles controlavam-nos para enfatizar que quem mandava era o partido.

Também havia problemas na economia, não? Eles não tiveram importância para os protestos?

O início das reformas havia provocado problemas. Antes, todos os bens tinham o preço designado pelo sistema planificado. Com as reformas de mercado, o Estado perdeu o controle da economia. Veio a inflação, que chegou como uma surpresa para os setores urbanos chineses no verão de 1988, e alcançou dois dígitos, cerca de 18% ou 19%.  É claro que não se pode dizer que é comparável ao que ocorre hoje na Venezuela. Mas, para os chineses, era um choque, porque, por 40 anos, as pessoas não tinham experimentado nada assim.

Havia, de fato, problemas econômicos. Mas eu argumento que os protestos de 1989 foram sobretudo políticos. As reformas econômicas ainda estavam no começo, as pessoas não imaginavam que a China chegaria a ser vista como uma força econômica. O que se dizia era que tínhamos nossos próprios problemas, que precisávamos decidir sobre nossas próprias reformas, que não deveriam ser controladas por uns poucos anciões hierárquicos. As coisas deveriam estar disponíveis para consultas e discussões. As massas deveriam ter voz sobre os rumos que deveriam seguir as reformas, e sobre quem sofreria mais e quem se beneficiaria das medidas.

40 anos de crescimento econômico
PIB
PIB PER CAPITA
4.000
3.000
A economia chinesa é hoje
37 vezes maior
do que em 1978 , com
crescimento médio de 9,4% ao ano
2.000
1.000
0
1978
1990
2000
2010
2018
Presos políticos
por ano de detenção
Olimpíadas
de Pequim
Massacre da Praça
da Paz Celestial
800
600
400
200
0
1981
1990
2000
2010
2019
Fonte: Financal Times
40 anos de
crescimento econômico
PIB
PIB PER CAPITA
4.000
A economia chinesa é hoje
37 vezes maior
do que em 1978 , com
crescimento médio de 9,4% ao ano
3.000
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1978
1990
2000
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2018
Presos políticos
por ano de detenção
Olimpíadas
de Pequim
Massacre da
Praça da
Paz Celestial
800
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1981
1990
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2010
2019
Fonte: Financal Times

Pode-se dizer que a perestroika e as reformas na União Soviética inspiravam os manifestantes?

Sabíamos o que acontecia na União Soviética e também que Gorbachev iria visitar a China. A visita era importante, porque os dois partidos, soviético e chinês, estavam afastados havia quase 30 anos. Mas o impacto da URSS era menor do que o impacto do que acontecia na Polônia, onde já havia o sindicato independente Solidariedade.

Quando formamos a primeira organização estudantil não oficial, no campus da Universidade de Pequim, sugeriram que poderíamos nos chamar Solidariedade Chinesa. Logo pensamos que isso poderia ser provocativo demais, e decidimos nos chamar só União Autônoma. Se você olhar a lista dos estudantes mais procurados, Wang Dan, o número 1, imprimiu e distribuiu um texto na universidade no dia 5 de abril, antes, portanto, da morte de Hu. No texto, ele mencionou 3 países da Europa Oriental como exemplos: Polônia, Hungria e a Tchecoslováquia.

A senhora ainda mantém contato com pessoas da época?

As pessoas com quem mantenho contato são aquelas que se mantiveram ativas politicamente. É um número pequeno, e quase todos estão fora da China. Podemos dizer que permanecemos em contato exatamente porque ainda estamos ativos e ainda fazemos barulho, mantendo a memória viva. Wang Dan, o mais procurado, estabeleceu uma organização em Washington no ano passado, chamada “Dialogue China”.

A organização propõe que mudanças podem vir a qualquer momento, e que devemos nos manter ocupados em não só manter viva a memória do passado, mas também em propor futuros para a China, para que a população chinesa se torne mais bem preparada política e intelectualmente. Há alguns comitês na instituição, e um deles é o de pesquisa, ao qual ele me convidou para me juntar. Há também pessoas em grandes universidades, como Stanford e Columbia, e em outras partes dos EUA e da Europa. Há pessoas também em Hong Kong, que acabam de lançar um livro em apoio à democracia na China.

Wang fala durante uma entrevista coletiva ao pé do Monumneto dos Heróis do Povo, no centro da Praça da Paz Celestial, no dia 1 de junho de 1989; todos os seis estudantes nesta foto estavam na lista de 21 mais procurados pelo governo após o massacre Foto: Chain Ling/ Reprodução
Wang fala durante uma entrevista coletiva ao pé do Monumneto dos Heróis do Povo, no centro da Praça da Paz Celestial, no dia 1 de junho de 1989; todos os seis estudantes nesta foto estavam na lista de 21 mais procurados pelo governo após o massacre Foto: Chain Ling/ Reprodução

Em um texto de 2007, a senhora menciona um Comitê de Mães de vítimas do massacre. Elas permanecem ativas? A senhora tem contato com elas?

O comitê foi formado para apoiar a democracia na China. A líder desse grupo, o seu símbolo, é Ding Zilin, ex-professora da Universidade do Povo em Pequim, já em seus 80 anos, cujo filho tinha 17 anos quando foi morto pelas tropas do governo, na madrugada de 3 para 4 de junho. Ela estava determinada a não silenciar sobre o caso, e se pôs a coletar nomes de vítimas, apesar de todos os obstáculos, 24 horas por dia, sete dias por semana. Conseguiram coletar os nomes de mais de 200 de vítimas fatais, mesmo atuando sob enorme pressão. Recentemente, ela perdeu o marido, que também era o coração do grupo. Então o bastão foi passado para uma mulher mais jovem que perdeu o marido em 1989.

O grupo teve mais de cem membros, incluindo homens que perderam os filhos. Um deles cometeu suicídio em 2010, por não conseguir ver justiça em vida. A melhor comparação são as mães da Praça de Maio, na Argentina. A diferença entre os dois é que as argentinas conseguiram fazer a própria voz ser ouvida. Na China, elas foram constantemente reprimidas pela polícia. Se não fosse por pessoas apoiando de fora, particularmente de Hong Kong, teriam sido completamente caladas. Em nenhum momento as famílias das vítimas puderam fazer o luto juntas. O luto só é autorizado individualmente. O governo chinês é muito desumano a esse respeito.

Como a senhora percebe a memória dos eventos? E por que acha que o governo chinês continua a tentar escondê-la?

Em alguma medida, principalmente fora das grandes cidades, o governo foi bem-sucedido em controlar a memória dos eventos na praça e da repressão que impôs. Mas o próprio governo esteve sob pressão, em todos estes anos, para esconder os episódios, porque havia, até mesmo no partido, a impressão de que era errado usar as Forças Armadas para reprimir revoltas internas. O governo, a princípio, chamou os eventos de "rebelião contrarrevolucionária". Depois mudaram apenas para "rebelião". Em seguida passaram a chamar de "lamentáveis infortúnios".

Há outras questões. See aqueles episódios continuam a ser vistos como uma vitória do partido sobre seus inimigos, não deveriam ser comemorados? Alguns membros do Exército morreram, então deveriam homenageá-los todos os anos. Mas sempre temeram fazer isso. Também tiveram muito medo de que o aniversário servisse como lembrança para os atuais estudantes. Por conta disso, começaram a reprimir estudantes ativistas. Desde o ano passado, movimentos e grupos de estudantes marxistas que apoiam trabalhadores foram reprimidos.

No geral, o governo sempre fica muito nervoso no final de maio e no começo de junho. Neste ano, impediram encontros públicos de estudantes entre 25 de maio e 5 de junho. Um amigo meu que está na Europa diz que isto significa simplesmente que 4 de junho é uma ferida que nunca foi curada, é uma ferida da História. Tentaram esconder, mas nunca foi curada.

Em sua opinião, quais são as chances de um evento parecido acontecer hoje ?

As chances são bem reais. No ano passado, os estudantes universitários marxistas surpreenderam, apoiando trabalhadores em Guangdong (Cantão). Não mobilizaram muita gente, mas em 1986 também foi assim, e dois anos depois, com outros problemas, a sociedade se tornou inquieta e o descontentamento se espalhou, o que permitiu, quando os estudantes foram à praça, que a sociedade respondesse de forma positiva. Não é improvável nem impossível ver outra explosão súbita, como em muitos outros países. Foi este o caso da Primavera Árabe, que não deu certo em nenhum dos países, exceto a Tunísia. Mas oito anos depois temos manifestações na Argélia e no Sudão. Então a democracia enquanto direção permanece.

A desaceleração da economia pode ter consequências políticas?

O governo está tentando tomar medidas para reverter essa tendência, mas há frustrações subterrâneas, sendo cozidas. Se houvesse uma faísca, é provável que a sociedade respondesse, como fez há 30 anos. Que tipo de faísca poderia ser? Qualquer coisa. No ano passado, houve uma versão chinesa do “#Metoo” que provocou mobilizações em vários campi e cidades, com encontros reunindo não só mulheres, mas também homens. Isto mostra que as pessoas jovens anseiam por discussões mais livres, por uma troca de ideias mais aberta e resistente aos controles ideológicos.

Muito se diz que o presidente Xi Jinping é um centralizador, que endureceu o regime. Como a senhora o vê?

Xi Jinping está tentando mobilizar sentimentos nacionalistas, o que pode se sustentar por algum tempo, mas não para sempre. O partido sob Xi Jinping está tomando a direção errada em sua condução da sociedade. As pessoas prestam atenção principalmente em sua política externa, com a Iniciativa do Cinturão e da Rota, que ele tem implantado de forma bem agressiva, e também na guerra comercial com os EUA. Dentro da China, a principal questão seria o aperto em relação à sociedade.

O próprio Xi Jinping fez sua formação durante a Revolução Cultural, entre 1966 e 1976, onde aprendeu a recorrer muito à ideologia. Basicamente, este é o seu grande erro, que gera uma bomba relógio. Conforme a guerra comercial aperta, ele usa esses ensinamentos de autossuficiência, como nos anos 1950.

Ele ordenou o partido e o sistema a fortalecer todas as questões de classe. Mas, por classe, Mao se referia à classe trabalhadora nas cidades e aos camponeses em áreas rurais. Desde o começo das reformas, de 1978 até agora, tudo o que o partido fez foi abandonar essas ideias. Em 1990, abandonaram  os trabalhadores, sem segurança nem rede social para protegê-los. O partido não tem a mesma base de classe que tinha Mao, pelo contrário, essas questões se tornaram ultrapassadas e distantes da realidade social. Mao era muito dependente da ideia de autossuficiência, mas Xi Jinping está completamente inserido no sistema capitalista.  Para administrar a sociedade, ele depende realmente é da polícia.