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Trump confronta realidade em que mais americanos podem morrer do que nas guerras do Vietnã e da Coreia

Estimativa mais 'otimista' do governo aponta para 100 mil mortos; juntos, os dois conflitos deixaram 97 mil mortos entre as forças dos EUA
Donald Trump participa de entrevista coletiva para falar sobre as estimativas do governo para o número de casos e mortes por coronavírus nos EUA, no dia 31 de março Foto: ERIN SCHAFF / NYT
Donald Trump participa de entrevista coletiva para falar sobre as estimativas do governo para o número de casos e mortes por coronavírus nos EUA, no dia 31 de março Foto: ERIN SCHAFF / NYT

WASHINGTON — Há cinco semanas, quando havia 60 casos confirmados do coronavírus nos EUA, o presidente Donald Trump não parecia muito alarmado. “É só uma gripe” , disse. “Isso é como se fosse uma gripe”. Ele estava fazendo essa comparação até a última sexta-feira.

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Na terça-feira, contudo, quando foram registrados 187 mil casos nos EUA (agora o número passa de 207 mil, com 4.600 mortes), com mais americanos sendo mortos pelo vírus do que nos ataques de 11 de setembro de 2001, quando 2.977 pessoas perderam a vida, a visão do presidente mudou de forma radical. “Não é a gripe”, passou a dizer, “é algo violento”.

O semblante preocupado do presidente que apareceu na sala de imprensa da Casa Branca por mais de duas horas na terça, ao lado de gráficos mostrando as projeções de mortes em proporções catastróficas, mostra que ele estava se deparando com a realidade que se recusara a aceitar. Os números mostravam que entre 100 mil e 240 mil americanos morreriam — isso se o país adotasse de forma estrita as restrições que podem asfixiar a economia e jogar milhões na pobreza.

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Uma crise que Trump repetiu de maneira assertiva “estar sob controle” e esperava que desaparecesse “milagrosamente” acabou consumindo seu governo, colocando-o diante de um desafio que só agora ele parece enxergar de forma mais clara.

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Os números chocantes o forçaram a revisar seus planos de reabrir o país até a Páscoa, mas eles não eram novos ou surpreendentes. Especialistas vêm falando sobre isso há semanas. Mas agora, mais do que nunca, Trump parecia aceitá-los.

— Quero que cada americano esteja preparado para os dias difíceis que estão pela frente — disse o presidente, ao falar sobre os esforços para preparar o país para a já esperada onda de doença e mortes. — Vamos passar por duas semanas muito difíceis.

Milhares de mortes

Dentro do melhor cenário apresentado na terça-feira, Trump verá mais americanos morrerem nas próximas semanas e meses do que os presidentes Harry Truman , Dwight Eisenhower , John Kennedy , Lyndon Johnson e Richard Nixon viram morrer na Guerra da Coreia ( 40 mil americanos mortos) e do Vietnã ( 57.939 mortos em combate) combinadas.

A estimativa mais baixa é equivalente ao número de baixas americanas na Primeira Guerra Mundial, quando Woodrow Wilson era o presidente, e 14 vezes maior do que os mortos no Iraque e no Afeganistão durante os governos de George W. Bush e Barack Obama.

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É um capítulo sombrio para um mandato presidencial — algo que deixou Trump antecipando que esta seria “a pior coisa que este país provavelmente já viu”.

Uma pandemia não é uma guerra. Trump obviamente não escolheu ter de lidar com uma pandemia. Mas ele será julgado pela forma como responderá, e as avaliações de muitos setores estão sendo devastadoras, mesmo com as pesquisas mostrando um aumento do apoio público ao seu governo. Apesar de tentar se colocar como um presidente de tempos de guerra, ele continuou a reescrever a história de como lidou com a crise, insistindo em que entendeu a escala da ameaça desde o começo.

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— Sabia que poderia ser (catastrófica) — disse diante dos jornalistas. — Sabia de tudo, sabia que poderia ser horrível e sabia que talvez as coisas pudessem ser melhores.

O presidente menosprezou a seriedade da ameaça porque escolheu passar alguma tranquilidade.

— Quis oferecer alguma esperança às pessoas. Você sabe, sou um grande animador de torcida do país.

Ele disse que algumas vozes do setor empresarial recomendaram que não reagisse de maneira agressiva ao vírus, talvez preocupadas com os possíveis impactos para a economia, que caminha para uma recessão quase certa.

— Ouvi muitos amigos, empresários, pessoas com um bom senso comum, eles disseram “por que não deixamos as coisas acontecerem?” — Trump disse, sem revelar nomes. — Muitas pessoas disseram isso, muitas pessoas pensaram nisso, deixe acontecer, não faça nada, deixe acontecer e pense nisso como uma gripe. Mas não é uma gripe. É violento.

Restrições tardias

Apesar das críticas, o presidente negou que ele tenha deixado a doença “correr solta”, lembrando sua decisão de limitar as viagens vindas da China, no começo de janeiro. Mas Trump fala dessa ação como se fosse a única necessária, quando especialistas já diziam que os benefícios de restringir as viagens estavam diminuindo porque os EUA não usaram esse tempo a seu favor para aumentar o ritmo de testes realizados na população.

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O presidente não explicou na terça-feira as razões pelas quais as testagens estavam sendo tão lentas, nem o motivo de ter esperado tanto tempo para recomendar o cancelamento de grandes eventos, o fechamento de negócios e escolas, além de limitar aglomerações — medidas que só começaram a ser tomadas quando os governadores resolveram adotá-las por conta própria. Ele também não falou sobre seu desejo de declarar o país reaberto até a Páscoa, apenas para mudar de opinião dias depois, mesmo dizendo compreender a gravidade da situação.

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Qualquer que seja a escala de vítimas, a pandemia de 2020 vai estar no mesmo patamar de algumas das piores do último século. A mais grave ocorreu entre 1918 e 1920, quando a gripe espanhola matou 675 mil americanos, incluindo muitos soldados que lutavam na Primeira Guerra Mundial . Entre 1957 e 1958, na epidemia da gripe H2N2 , foram 116 mil mortos, e na de 1968, do vírus da gripe H3N2 , cerca de 100 mil. Em 2009, o vírus da gripe H1N1 , quando a ação do então presidente  Barack Obama foi severamente criticada por Donald Trump, deixou 12 mil vítimas. A chamada “gripe comum” provoca entre 12 mil e 61 mil mortes por ano desde 2010.

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O governo Trump aumentou seus esforços nas últimas semanas, expandindo a testagem e buscando trabalhar em conjunto com os estados para entregar equipamentos como respiradores, máscaras e outros itens necessários. O presidente mandou navios-hospitais e engenheiros do Exército para ajudar, forçou a General Motors a fabricar mais respiradores e, depois de flertar com uma normalização, reforçou as medidas de distanciamento social, agora válidas até abril. Os governadores viram com bons olhos a ajuda, mas disseram que ainda não é o bastante.