Exclusivo para Assinantes
Mundo

'Vi uma coluna de soldados desorientados escorraçados pelos estudantes', conta embaixador do Brasil em Pequim em 1989

Então adolescente, filha do diplomata relatou em diário a transição de uma vida de liberdade na China para dias de medo durante a repressão aos protestos na Praça da Paz Celestial
Embaixador Abdenur, mulher e filhos na chegada a Pequim em janeiro de 1989; ao centro da foto, sua filha Adriana, que tinha 14 anos quando ocorreu o Massacre da Praça da Paz Celestial Foto: Arquivo Pessoal
Embaixador Abdenur, mulher e filhos na chegada a Pequim em janeiro de 1989; ao centro da foto, sua filha Adriana, que tinha 14 anos quando ocorreu o Massacre da Praça da Paz Celestial Foto: Arquivo Pessoal

RIO  — Quando chegou a Pequim com a sua família em janeiro de 1989, o então embaixador do Brasil na China , Roberto Abdenur , tinha clara consciência da tensão política que dominava o país, então completando uma década de reformas econômicas . No entanto, relata, nem os diplomatas estrangeiros "mais informados" esperavam que o regime reagisse aos protestos iniciados por estudantes tão duramente quanto na madrugada de 3 para 4 de junho de 1989. A virada daquele sábado para domingo há exatos 30 anos entrou para a História como a noite do Massacre da Praça da Paz Celestial .

Abdenur fora enviado pelo então presidente José Sarney para implementar acordos firmados no ano anterior, incluindo a produção conjunta de satélites. Desembarcou em território chinês com mulher e filhos menores de idade e não o deixaria mesmo quando a tensão chegasse ao ápice. "É como capitão de navio", ele diz, "você é o último a sair. Tinha que ficar lá para o que desse e viesse".

Com riqueza de detalhes, o embaixador relembra a sequência de eventos que culminou na repressão. O número exato de vítimas ainda é  desconhecido, com as estimativas variando entre 300  — número reconhecido pelo governo — e mais de 2 mil.

— Na manhã de sábado, o ar estava muito tenso. Havia uma expectativa de reação das autoridades chinesas, embora eu e meus colegas do corpo diplomático não imaginássemos quão dura viria a ser. Acompanhado de um diplomata mais jovem, caminhei por cerca de três quilômetros da embaixada brasileira à Tiananmen (nome chinês da Praça da Paz Celestial) para ver o que acontecia. Houve uma cena muito curiosa: uma coluna de soldados chineses muito desorientados, cansados de marcharem sob o sol, que foram escorraçados pelos estudantes e pela população. Vi também com os meus olhos um tanque de guerra avançar com força para abrir caminho — relata. — Algumas horas depois, começou o massacre. Posteriormente, na noite seguinte, muitos tanques de guerra estacionaram ao pé do nosso complexo diplomático de maneira desordenada, gerando grande preocupação.

Da liberdade aos estrondos

Uma dentre seus três filhos, Adriana Abdenur, então uma adolescente de 14 anos, relatava a sua perspectiva daqueles dias num diário em inglês e chinês, os dois idiomas da Escola Número 5, que ela frequentava em Pequim. A antes imprevisível vida nova do outro lado do mundo — as referências visuais sobre a China disponíveis no exterior eram raras na era pré-internet — lhe trouxe por alguns meses uma rotina de liberdade e curiosidade. Sobretudo em relação aos protestos, que ultrapassavam as fronteiras das universidades para alcançar trabalhadores e setores mais amplos da população chinesa.

— Era um lugar muito desafiador para a família, porque pouquíssimos chineses falavam inglês, inclusive dentro da embaixada. O capitalismo não chegara à China, apesar das reformas em curso. Como Pequim era extremamente segura, eu pegava minha bicicleta e percorria a cidade, passando pela Praça da Paz e pelo Grande Salão do Povo. Circulava ali com os amigos para ver as manifestações e as obras de arte dos estudantes, que faziam referências à abertura ainda incipiente da China e pediam democracia — diz Adriana.

À época uma "adolescente rebelde", nas suas palavras, a filha do embaixador vivia num restrito círculo de amizades do meio diplomático, composto sobretudo de soviéticos, cubanos, chineses e africanos — reflexo das relações internacionais chinesas no fim da Guerra Fria. Com o acirramento das tensões entre maio e junho daquele ano, as famílias dos amigos começaram a deixar o país, e ela escapulia, contrariando as ordens do pai, para ver o que acontecia nos arredores.

Enquanto isso, entre maio e junho daquele ano, o tom dos escritos de Adriana ganhou novas dimensões de medo e também de preocupação pelos jovens que vira nas ruas. O ápice foi a noite do massacre ouvido da embaixada. Balas ficaram alojadas no teto da sala da secretária da representação diplomática brasileira.

— Estava no meu quarto com outras crianças, filhos de brasileiros que moravam em Pequim, e por volta de 1h ou 2h começamos a ouvir estrondos de canhão. Uma memória muito forte é a dos vidros do meu quarto... O barulho era assustador e durou a noite inteira. As janelas estremeciam. A gente não dormiu — relata. — No meu diário, o tom mudou de forma dramática. Eu tentava descrever vividamente os sons, as balas e as colunas de fumaça que vinham da praça. Enquanto isso, ficávamos aguardando alguma notícia chegar a nós, porque a televisão chinesa não mostrava nada do que acontecia.

Resgate de estudantes

Nas horas posteriores, alguns tanques assumiram posições que, segundo o embaixador Abdenur, davam a entender que se preparavam para proteger a praça de um eventual ataque. Temia-se o confronto entre militares pró e contra a repressão. Preocupado, ele se dirigiu,  em um comboio, à Universidade de Pequim. Lá, buscaria dez estudantes brasileiros que corriam o risco de serem alvo aleatório de atiradores numa eventual invasão do campus.

— Consegui o contato dos estudantes e ordenei que eles se juntassem para que nós os pegássemos. Conseguimos trazê-los à embaixada, que ficou cheia de gente: funcionários,outros poucos residentes brasileiros e estes estudantes. Em contato com o Itamaraty, organizamos a saída do pessoal brasileiro, que cinco dias depois pegou um voo de Pequim para Tóquio e, de lá, voltou ao Brasil. Ficou na embaixada só o corpo essencial. Minha mulher e meus filhos saíram junto com a comunidade brasileira —  conta. — Pequim estava convulsionada e totalmente paralisada. Havia muita preocupação com o risco de desabastecimento, e a embaixada brasileira em Tóquio nos enviou por avião comercial uma carga de mantimentos para que  eventualmente aguentássemos um período mais longo na China.

Chamando de "traumático para a China" o período até 1993, quando deixou o país, Abdenur ressalta a disputa de forças internas entre reformistas e conservadores dentro do Partido Comunista nos anos depois de 1989. Não só em decorrência do massacre em Pequim, como também da queda do Muro de Berlim.

— Com o desaparecimento do comunismo na Alemanha e o desfazimento da União Soviética, a China sentiu de perto uma ameaça. Isso agravou as tensões internas do regime — relata ele. — Houve uma parada temporária do processo de reformas e, mais adiante, no início de 1993, foi retomada a abertura ao exterior. E, assim, a China começou a retomar sua vida interna e relações internacionais.

Para Adriana, aqueles dias também deixaram marcas. Ela voltou à China alguns meses após a retirada do pessoal diplomático brasileiro e lá permaneceu até maio de 1993, de onde saiu para fazer faculdade nos Estados Unidos. Hoje pesquisadora da paz e da segurança, dedicou-se nos anos seguintes a estudos asiáticos e, especialmente, ao caso chinês:

— Testemunhamos aqueles dias e também as mudanças depois do massacre. Para mim, foi o início de uma conscientização sobre a temática dos direitos humanos, tanto que mais tarde na faculdade escrevi meu trabalho de conclusão de curso sobre os direitos humanos na China. Acabei voltando à China mais adiante para fazer intercâmbio na Universidade de Pequim, porque queria outra vivência do país.