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Visões diferentes de Macron, Trump e Erdogan levam tensão a aniversário de 70 anos da Otan

Cúpula da aliança em Londres revela diferenças entre aliados sobre o papel da organização na geoestratégia do século 21
Presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, e presidente da França, Emmanuel Macron, após entrevista coletiva em Paris Foto: LUDOVIC MARIN / AFP
Presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, e presidente da França, Emmanuel Macron, após entrevista coletiva em Paris Foto: LUDOVIC MARIN / AFP

BRUXELAS — Adormecida. Em morte cerebral. Obsoleta. A Otan , a aliança militar liderada pelos Estados Unidos, recebeu mais críticas nos últimos três anos do que em seus 70 anos de história. Os virulentos ataques não chegaram do exterior, e sim de seus principais sócios. Os EUA e a França , duas grandes potências em ambos extremos do Atlântico, não escondem o descontentamento com a situação da aliança, que nesta terça e amanhã realiza uma cúpula em Londres em meio a uma enorme tensão entre os aliados. A turbulência mais perigosa e instável é o choque entre o presidente francês, Emmanuel Macron , e o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan , por causa da intervenção da Turquia na Síria.

O clima é de funeral, mais do que de celebração. A cúpula da Organização do Tratado do Atlântico Norte foi convocada para ser em comemoração dos 70 anos da aliança, além de um sinal político de que, após o Brexit , o Reino Unido seguirá uma peça-chave para manter o vínculo transatlântico entre a União Europeia e os Estados Unidos.

No entanto, preparativos para a reunião revelaram que as discrepâncias entre os aliados alcançaram patamares inimagináveis há alguns anos. Alguns dos aliados, encabeçados pelo presidente americano, Donald Trump , e Macron, não compartilham de forma alguma da estratégia de uma aliança que consideram estar presa a uma análise geoestratégica do século XX, centrada na Rússia como inimiga, e demasiadamente lenta em sua adaptação às verdadeiras ameaças do século XXI.

Leia mais: Otan vai criar sistema de proteção contra ameaças vindas do espaço

— Estamos em um momento tão complicado quanto emocionante, porque a história está sendo reescrita diante de nós — confessou uma fonte do alto escalão envolvida nos preparativos da cúpula desta semana na capital britânica.

Por razões distintas, as relações de Trump e Macron ameaçam as celebrações em Londres. Os dois parecem dispostos a estragar a festa do secretário-geral da Otan, o norueguês Jens Stoltenberg , que foi ultrapassado por acontecimentos que podem pôr em dúvida sua capacidade de liderança.

A fagulha que coloca em perigo a cúpula é a intervenção da Turquia contra os curdos em território da Síria , em outubro, em uma ação unilateral de Erdogan, que enfureceu Macron. Desde então, o presidente francês tem criticado a passividade da Otan, que disse estar em "morte cerebral" , e chegou a pôr em dúvida a assistência mútua em caso de ataque externo, o princípio básico consagrado no artigo 5 do Tratado de Washington.

Gastos com defesa por país da Otan (em % do PIB)
Criada com 12 membros em 1949, após a Segunda Guerra Mundial, a Aliança Atlântica tem hoje 29
Mais de 2%
Entre 1% e 1,99%
Menos de 1%
País da União Europeia
fora da Otan
Estônia
Reino
Unido
Letônia
Sede em
Bruxelas
Lituânia
Polônia
Romênia
OCEANO
ATLÂNTICO
Mar Negro
Bulgária
Mar Mediterrâneo
Grécia
Fonte: Otan e AFP
Gastos com defesa por país
da Otan (em % do PIB)
Criada com 12 membros em 1949, após a Segunda Guerra Mundial, a Aliança Atlântica tem hoje 29
Mais de 2%
Entre 1% e 1,99%
Menos de 1%
País da União Europeia fora da Otan
Reino
Unido
Estônia
Sede em
Bruxelas
Letônia
Lituânia
Polônia
Romênia
OCEANO
ATLÂNTICO
Bulgária
Grécia
Fonte: Otan e AFP

A Turquia se transformou em uma pedra no caminho de Paris , tanto por sua atuação na Síria quanto por ter adquirido o sistema russo de defesa S-400. O presidente Erdogan reagiu aos ataques de Macron, dizendo na semana passada que as declarações do líder francês mostram que ele sofre de "morte cerebral".

O secretário-geral Stoltenberg viajou na quinta-feira a Paris para tentar acalmar a situação. No entanto, longe de apaziguar o cenário, o ex-primeiro-ministro norueguês foi alvo de críticas públicas feitas por Macron.

Após um encontro de uma hora a portas fechadas, o presidente francês, que no mesmo dia havia anunciado a morte de 13 soldados franceses no Mali , questionou em entrevista coletiva não só a estratégia recente da Otan [com Rússia e China como possíveis objetivos], mas também a gestão das reuniões recentes. Ele defende o entendimento com Moscou e Pequim e a concentração de recursos na luta contra o terrorismo.

— A análise de Macron de que a Europa não está mentalmente e culturalmente preparada para um mundo dominado pela competição geopolítica me parece acertada. No entanto, suas sucessivas declarações sobre o papel da Otan e da UE parecem um pouco confusas, inclusive erráticas — destacou Luis Simón, diretor do escritório em Bruxelas do Instituto Elcano. Ele acredita que os Estados Unidos podem compartilhar da tranquilidade de Paris a respeito da Rússia, mas duvida que Washington irá permitir que a Otan lave as mãos a respeito da China, "que é o principal problema estratégico dos EUA".

Segundo uma fonte francesa, "a reunião de Londres não pode ser apenas comemorativa".

— Deve haver um verdadeiro debate sobre o futuro de uma organização na qual cada grupo de aliados parece ter interesses e prioridades diferentes — afirmou.

Crise de identidade

A ofensiva reformista de Macron, no entanto, provoca sérias dúvidas entre os aliados.

— Os países do Leste Europeu estão nervosos depois de ouvir suas palavras sobre a Rússia — destacou uma fonte aliada.

Outros duvidam do alcance real das iniciativas do presidente francês. Lembram que Macron também apresentou discursos reformistas similares na União Europeia e, após dois anos e meio no poder, não conseguiu avançar com nenhum de seus grandes planos.

A Otan já sofreu uma primeira crise de identidade depois do fim da Guerra Fria. Mas se esforçou para montar uma reestruturação e tentar se adaptar às novas necessidades de defesa de seus membros. Em 1971, eram 64 quartéis-generais e 24 mil funcionários; em 2007, já eram sete quartéis e 7 mil funcionários, segundo dados de Claudia Major, pesquisadora do Instituto Alemão para Assuntos Internacionais e de Segurança.

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A racionalização, porém, não foi acompanhada de uma revisão dos princípios básicos da aliança, que segue orientada basicamente à defesa mútua em caso de uma agressão militar clássica por parte de um terceiro país. Essa falta de adaptação desencadeou uma segunda crise de identidade, possivelmente mais letal que a primeira.

A pesquisadora Claudia Major, em recente análise sobre o futuro da Otan a partir de uma perspectiva alemã, contempla três possibilidades: um status quo melhorado, uma retirada progressiva dos EUA com o consequente declínio da Otan e o consequenre risco de segurança para a Europa, ou uma europeização da aliança, na qual França, Alemanha e Reino Unido assumiriam uma crescente liderança.

Stoltenberg não acredita na teoria da europeização. Em entrevista recente a El País, ele afirmou que "a Otan é europeia e americana, precisamos de ambas as partes, não de uma ou outra". O secretário-geral destacou que, depois do Brexit, "80% dos gastos em defesa da Otan serão de aliados que não pertencem à UE".

A previsão geral entre os aliados, dado o ambiente reinante, é que a Otan celebrará seus 70 anos em Londres em um mar de dúvidas sobre quanto tempo de existência ainda possui.