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Opinião

Artigo: Barulheira medonha

Cartas de Bishop são talvez o oposto de seus poemas, poucos e precisos

No último dia 25 de novembro, a Flip anunciou a poeta americana Elizabeth Bishop (1911-79) como autora homenageada da edição de 2020. Em seguida, uma onda de protestos se espalhou pelas redes sociais, acusando a escritora de ter apoiado o golpe de 64 e pedindo o cancelamento da homenagem principalmente em razão do cenário político brasileiro atual. Bishop não era uma autora propriamente politizada, como afirmam seus comentaristas, mas acho importante retornar à fonte que originou essa campanha.

De fato, a poeta registrou em cartas a amigos algumas das opiniões que estão sendo replicadas. Quem lê na íntegra a carta de 4 de abril de 1964, escrita três dias depois da tomada do poder pelos militares — a da “ nice quick revolution ”, traduzida de forma questionável no Brasil por “revolução rápida e bonita” —, pode destrinchar um pouco melhor o raciocínio que a levou a tal consideração. A frase parece expressar certo alívio quanto a uma expectativa de violência que ela tivesse, mas que não se concretizou naquele momento. (Lota, a quem ela se refere abaixo, era sua companheira.)

“Queridos Lowellzinhos,

A Mary acaba de ler um telegrama de vocês pelo telefone — já que não vamos para Samambaia este final de semana. “Não sei quando foi enviado [...], se conseguir respondo à tarde…” Apesar de não saber muito o que dizer. ‘Está tudo bem.’, não estaria certo, nem ‘Calmo e em ordem’, tampouco ‘Reformas, sim... Comunismo, não’, nem ‘Mães católicas contra o comunismo’ — ‘Reformas, sim... Comunismo, não’ seria razoável se eu estivesse me sentindo um pouco mais esperançosa... Bem, foi uma revolução fácil e rapidinha [talvez uma tradução mais adequada, já que o nice parece estar qualificando o quick , ou talvez “agradavelmente rápida”] — tudo acabou em menos de 48 horas. Na verdade, sentimos certo desapontamento porque nos preparamos para viver colados no rádio e na TV, estocamos café [mais um erro da tradução original, em que se lê “deitadas sobre muitos sacos de café”], fiz pão e assei um pernil, já que achamos que o gás seria cortado [...] Aquele foi o pior momento – eu sabia que Lota estava lá dentro [do Palácio da Guanabara, onde toda a tensão militar estava concentrada] — ela insistiu em voltar para lá —, ou eu achava que estivesse e [não queria] que fosse apanhada pelas tropas federais. Contudo uma hora mais tarde tudo havia terminado. Todo o exército veio e voltou-se contra Goulart — e ele já havia fugido, mas nós não sabíamos. Então uma enxurrada de pessoas saiu para as ruas — chuvas de papel picado, bandeiras, música etc. Saí de carro com um amigo para ver a cidade. Na calçada, um autêntico toque carioca — homens grandes e peludos, de calção de banho, dançando feito loucos, sacudindo suas toalhas molhadas.”

A leitura que ela faz da realidade, e me parece clara, independentemente de suas inclinações políticas, é da crítica de costumes. Se essa análise se estender para toda a produção epistolar da poeta — centenas de cartas —, fica evidente sua enorme capacidade de produzir imagens, dar sentido a banalidades e minúcias e descrever personalidades com perspicácia, muitas vezes com a espontaneidade de quem troca despreocupadamente mensagens com os amigos no WhatsApp.

Em 3 de outubro de 1960 Bishop escreveu para sua médica: “Há uma possibilidade de um general terrivelmente pateta [Lott] ser eleito — mas se ele não for, vai ser a primeira mudança geral no poder em mais de 30 anos e os vestígios da ditadura vão finalmente ser varridos.” As opiniões contraditórias e ambíguas ao longo dos anos são incontáveis — lê-las é como assistir ao cérebro de um escritor em funcionamento. Mas essa complexidade também permite recortes redutores capazes de encapsular uma visão de mundo ao gosto do freguês. Suas cartas são talvez o oposto de seus poemas, poucos e precisos, muitas vezes distantes, mas sempre essenciais.

Ainda que Bishop não fosse politizada, ela era profundamente sensível aos problemas sociais do Brasil: “Micuçú olhava o mar / E o céu, liso como um muro. /Viu um navio se afastando, /Virando um pontinho escuro, // Uma mosca na parede, /Até desaparecer /Por detrás do horizonte. /E pensou: ‘Eu vou morrer’. [...] /Veio helicóptero do Exército /Bem atrás do urubu. /Lá dentro ele viu dois homens /Que não viram Micuçú. //Logo depois começou /Uma barulheira medonha. /Eram os soldados subindo /O morro da Babilônia” (tradução de Paulo Henriques Britto). Nesse longo poema, “Ladrão da Babilônia”, a elite carioca assiste à invasão da favela do alto dos prédios, usando binóculos. Foi sobre essa elite, que a influenciou politicamente, que recaiu boa parte de suas críticas sobre o Brasil. Eu já intuía que Elizabeth Bishop era pouco conhecida por sua importância que tem como poeta e para a cultura brasileira. A confusão dos últimos dias reforçou essa impressão.

Fernanda Diamant é curadora da Flip