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Artigos escritos por colunistas convidados especialmente para O GLOBO.

Por Edvaldo Santana

Você já foi chamado de macaco? Já viu seu filho ser chamado de macaco? Não basta olhar os sucessivos ataques de ódio contra Vini Jr. apenas como episódios de racismo isolados a um campo de futebol. É também fora da arquibancada, como o repórter que tentou desviar o foco para o jogo, quando a pauta era outra — o racismo.

A cena de domingo, 21 de maio, numa partida em Valência, Espanha, causou indignação e revolta. No jogo ao vivo, o impacto do que assistia me deixou sem ação. Sabia que não era ficção, mas a repetição de cenas repulsivas, com enredo idem, só que no mesmo cenário — o futebol espanhol. Depois, já nos noticiários, veio a angústia. Não contive as lágrimas. A sensação era estranha. Como a reviver um passado de sofrimento, que insiste em ficar por aí.

É isso que sente um negro de 70 anos, filho de um pai que nasceu ainda em regime de senzala. É isso que sente o negro ao ver um outro encurralado, num alçapão, como se atirado a leões. E eram impiedosos. Como aquele rapaz suportou intermináveis minutos a ser xingado de macaco e cachorro, além de outros palavrões? Como conseguia se concentrar no jogo?

Foi desesperador vê-lo de um lado para o outro, sempre de cabeça erguida, como se à busca de uma reação concreta que não a dele próprio. Nem no árbitro encontrou amparo. Quanto profissionalismo! Quanta coragem! E rara num ambiente dominado por patrocinadores que preferem atitudes anódinas, do tipo mais do mesmo.

“Dói” ser chamado de macaco, como disse Aranha, goleiro do Santos em 2014, ao ser xingado numa partida contra o Grêmio em Porto Alegre. Eu já fui chamado de macaco. Mais de uma vez. E já vi um dos meus filhos, aos 6 anos, ser chamado de macaco. Pense na humilhação.

A história explica o (mau) comportamento e o racismo dos espanhóis. Parte dela é contada por Daron Acemoglu e James Robinson, em “Por que as nações fracassam”, que também detalham as razões de muitas delas terem enriquecido. É uma história triste. E vergonhosa. A colonização espanhola da América Latina e da América do Sul foi das mais sanguinárias. Não era suficiente roubar o ouro e a prata. A “vitória” precisava ser acompanhada da tortura e assassinato dos povos indígenas. E, 500 anos depois, é assim que ainda veem Vini Jr. e outros negros, mesmo que espanhóis.

Essa era a prática de “heróis” espanhóis como Hernán Cortés, no México, e Francisco Pizarro, no Peru. Em 1525 quase tudo que era dos astecas já tinha sido levado, e a população indígena ainda pagava por uma coisa chamada encomienda, além de ser explorada com trabalhos forçados. Essa estratégia “vencedora” foi aprimorada e utilizada nas “conquistas” do Império Espanhol.

Vini Jr., nas luxuosos praças apelidadas de arenas, parece um touro atacado por milhares de toureiros raivosos, com sangue nos olhos. Reage com o que tem. Um talento inigualável, que se reflete em dribles desconcertantes e gols memoráveis. Em lugar de reverência, mais ódio. Ironicamente, são suas jogadas que atraem seus algozes racistas, que pagam para humilhá-lo. Mas não conseguem.

Ao contrário das clássicas e repugnantes touradas, Vini Jr. vence sempre, mesmo quando o placar lhe é adverso, e, com isso, faz seus “toureiros” ficarem mais odiosos. Para eles, Vini Jr. é “a placa de contramão, o sangue no olhar do vampiro” (“Gita”, de Paulo Coelho e Raul Seixas). Mas é isso, Vini Jr. Sua coragem ajudará a mudar a História, a fazer História.

*Edvaldo Santana, doutor em engenharia de produção e professor titular aposentado do Departamento de Economia da UFSC, foi diretor da Aneel

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