Artigos
PUBLICIDADE
Artigos

Colunistas convidados escrevem para a editoria de Opinião do GLOBO.

Informações da coluna

Artigos

Artigos escritos por colunistas convidados especialmente para O GLOBO.

Por

Há pelo menos três décadas, diferentes governos são desafiados por nosso maior impasse urbano contemporâneo: a Cracolândia paulistana. Por que tantas operações policiais fracassam em dispersar essa população da região?

Este texto reflete sobre o que temos pensado como “solução” para a Cracolândia e traz pontos sobre as possíveis saídas para essa sinuca da governança urbana em São Paulo.

Como ponto de partida, é necessário que desloquemos nossa compreensão do que é o problema e do que é a solução. A constituição da Cracolândia não responde apenas a dinâmicas locais. Basicamente, ela funciona como um hub para diferentes populações pauperizadas e marginalizadas que circulam pela cidade e pelo país. Não estamos falando apenas de usuários ou traficantes de crack, mas de trabalhadores precários e itinerantes, desempregados, desabrigados, migrantes nacionais e internacionais recém-chegados, prostitutas etc.

A população do “fluxo” é flutuante, e não são sempre as mesmas pessoas que ficam ali, apesar de serem muito parecidas do ponto de vista do perfil socioeconômico. A Cracolândia é fruto de circuitos urbanos marginais que deságuam na região, por isso as ações de dispersão fracassam, pois há sempre novas pessoas chegando, passando e antigas retornando. Por isso todas as tentativas desesperadas do poder público de “acabar”, “sufocar” — fazer sumir — fracassaram sistematicamente e ainda tiveram como efeito perverso o aumento da tensão na região.

A possibilidade de solução é centrarmos os esforços na amenização do conflito e na melhora das condições de vida tanto da população que frequenta o “fluxo” quanto de moradores e comerciantes que habitam a região. Qualquer ação pública realmente comprometida em pensar em saídas precisa ser de longo prazo e ir além da questão do consumo e da venda de crack. Cinco pontos precisam ser considerados.

Primeiro, o crack é apenas um catalisador dos problemas sociais que atravessam a questão. As intervenções estatais precisam pensar de maneira integrada quatro eixos principais: acesso à moradia, à renda, à profissionalização e à saúde.

Segundo, não adianta ter programas humanitários incríveis apenas voltados para a região. As demandas de acesso a direitos que não são satisfeitas nas periferias migram para o centro.

Terceiro, precisamos construir políticas de Estado que permaneçam mesmo com as trocas de governo. Temos visto que, a cada mudança eleitoral, destrói-se o que foi construído anteriormente, e cria-se um novo programa com um novo slogan. Essa lógica baseada em disputas partidárias e eleitoreiras tem gerado incerteza tanto para o público atendido quanto para trabalhadores sociais, prejudicando planos de melhoria de vida a médio e longo prazo.

Quarto, não é falta de prisão e nem falta de internação. Quando escutamos as histórias de vida dos frequentadores da Cracolândia, as passagens pelas cadeias e comunidades terapêuticas são recorrentes. Levantamentos já feitos no “fluxo” apontam que cerca de 70% dos frequentadores seriam egressos do sistema prisional. As cadeias estão muito mais em dinâmica de retroalimentação com a Cracolândia do que são parte de uma possível solução. O que falta é pensar estratégias de renda e de moradia para essas pessoas depois do isolamento (na cadeia e em centros de tratamento).

Quinto, é preciso criar mecanismos de amenização do conflito local. Formas de reparação econômica para moradores e comerciantes podem ser interessantes como maneira de reconhecimento das dificuldades materiais e emocionais que o problema gera para a cidade, mas que tem prejudicado alguns cidadãos mais que outros.

*Deborah Fromm, professora substituta da Sciences Po — campus Reims e Paris, é doutora em antropologia social pela Unicamp e pesquisadora do Núcleo de Etnografias Urbanas do Cebrap

Mais recente Próxima Insegurança jurídica