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Minha geração viveu infância e juventude sob a ditadura instaurada pelo golpe empresarial-militar de 1964. “Amigos presos, amigos sumindo assim, pra nunca mais”, cantou o imortal Gilberto Gil.

Parte de nós tinha o sonho da insurreição popular que, de maneira algo mítica, nos traria o “paraíso na Terra”, com igualdade e socialismo. Os sonhos não envelhecem, e quem vive mais amadurece. Nas lutas contra o arbítrio, aprendemos a valorizar a democracia.

Não uma democracia formal e banal, meramente eleitoral. Mas a democracia substantiva, participativa, de alta intensidade, na qual as instituições públicas são porosas às demandas populares.

A Comissão Parlamentar Mista de Inquérito dos atos de 8 de janeiro de 2023 aprovou o detalhado relatório da senadora Eliziane Gama (PSD-MA) sobre as articulações golpistas que culminaram na intentona, uma semana após a posse de Lula.

Com ele, aprovado por 20 votos contra 11, o golpismo sofreu um duro golpe. Mas nossa democracia é frágil, e nossa República pouco republicana: o golpismo — exitoso ou não — é tramado entre nós há mais de um século!

A própria Proclamação da República foi um movimento sobretudo militar, a que “o povo assistiu bestializado”, como disse Aristides Lobo, ministro do governo provisório do novo regime.

O golpe do Estado Novo e o golpe empresarial-militar de 1964 também significaram ataques à ordem democrática vigente. Não para ampliá-la, mas para restringi-la.

No capítulo das tentativas malsucedidas, estão o episódio das “Cartas falsas”, em 1921, na República Velha, para incriminar Artur Bernardes; o “Plano Cohen”, de 1937, na Era Vargas, inventado a partir do levante de alguns quartéis em 1935, sob a liderança de Luiz Carlos Prestes; a “República do Galeão” e o “Manifesto dos generais”, em 1954, contra Getúlio; as sublevações de Jacareacanga (Pará), em 1956, e de Aragarças em 1959, contra Juscelino Kubitschek; as articulações do general Sílvio Frota (com seu “ajudante de ordens”, o então capitão Augusto Heleno) e da linha dura militar contra a “abertura lenta, gradual e segura” dos generais Geisel e Golbery, em 1977.

Nos estertores da ditadura, têm moldura golpista o atentado do Riocentro (atribuído pateticamente à esquerda), em 1981; as tratativas para a derrota, por apenas dez votos, da Emenda Dante de Oliveira, das Diretas Já, em 1984; as ameaças à posse de José Sarney, em 1985; as pressões da cúpula militar sobre a Constituinte, em 1987 e 1988, para manter seu “poder interventor”. O famoso artigo 142 da Constituição é perversamente interpretado por setores da direita como autorização para as Forças Armadas agirem como tutoras e “moderadoras” da nação, na garantia de “lei e ordem”.

Um fantasma ronda nosso débil Estado Democrático de Direito: o fantasma do autoritarismo. Os ataques à democracia são um fenômeno mundial, que caminha de mãos dadas com o crescimento da extrema direita, dos grupos neofascistas, das “utopias” regressistas do enganoso discurso antissistêmico. A midiosfera que promove o individualismo desconstitui o sentido gregário da vida.

No Brasil, os pendores autocráticos encarnados por Bolsonaro têm mais base social que o integralismo de Plínio Salgado nos anos 30 do século passado. O ultraconservadorismo, também adepto do privatismo máximo, tem muitos representantes nos parlamentos e nos governos estaduais.

A aprovação do relatório da CPMI espanta a aparição mais recente do fantasma autoritário, que culminou na intentona de 8 de janeiro. O forte trabalho da senadora Eliziane é um atestado de óbito, de 1.331 páginas, dessa tentativa golpista. Não foi a primeira, talvez não seja a última.

Ainda faltam muita consciência, organização e participação populares, informação democrática, transparência na gestão e cidadania horizontal para nos livrarmos de vez desse mal. Amém!

*Chico Alencar, professor de História, é deputado federal (PSOL-RJ)

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