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Artigos escritos por colunistas convidados especialmente para O GLOBO.

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Imaginem comigo. Um concerto no charmoso Royal Albert Hall com a Orquestra Sinfônica de Londres conduzida por um dos mais celebrados maestros de nossos tempos, Daniel Barenboim. A peça era um concerto para violoncelo. Músicas chamadas “concerto” são aquelas feitas para explorar as belezas sonoras de um instrumento solista. Nessa ocasião, o instrumento seria o cello, tocado pela virtuose Jacqueline du Pré. Foi em 1968, ela tinha apenas 23 anos e era reconhecida internacionalmente pelo brilhantismo de sua arte. Ela e Daniel estavam casados havia um ano.

A parte final do concerto estava começando, um movimento repleto de energia e entusiasmo. Du Pré soava suas primeiras notas quando uma das cordas de seu violoncelo estourou, impedindo que continuasse a tocar. O concerto foi interrompido, ela pediu licença e se retirou do palco para trocar a corda.

A cena que descrevi ocorreu (há uma rara gravação disponível no YouTube), mas também é uma metáfora das doenças raras e da própria vida de Du Pré: cinco anos depois, ela foi diagnosticada com uma doença rara, interrompendo sua arte e sua vida no auge da juventude. Invariavelmente, doenças raras impedem a continuação de projetos pessoais, sonhos e ocorrem a qualquer momento do concerto que é a vida.

Doenças raras são aquelas que atingem menos de 65 pessoas numa população de 100 mil habitantes. Muitas nem sequer estão descritas como doenças, mas o fato de que ainda não tenham um nome ou sejam inscritas na Classificação Internacional de Doenças (CID) não impede que afetem incontáveis pacientes com nomes, sentimentos e vulnerabilidades.

Embora sejam raras, a população afetada não é. Apenas no Brasil, estima-se que haja 13 milhões de pessoas lutando diariamente, seja na jornada para obter um diagnóstico (que leva em média sete anos), seja para conseguir alguma cura ou cuidados paliativos.

Para os sistemas de saúde, as doenças raras representam um grande desafio de eficiência, custos e humanismo. Sim, humanismo, porque o modo como cada sistema cuida de seus pacientes raros diz muito sobre sua compreensão da dignidade humana, diante da limitação de recursos e dos critérios adotados para avaliar os investimentos feitos no desenvolvimento ou tratamento de cada doente.

São reflexões difíceis, mas que precisam ser feitas com seriedade, sensibilidade e urgência. O sofrimento de 13 milhões de brasileiros não pode esperar mais. Tramita no Congresso Nacional o PL 4.058/23, que cria o Estatuto da Pessoa com Doenças Crônicas Complexas e Raras. Mas não é preciso aguardá-lo para efetivar direitos. Afinal, saúde é um direito de todos, incluindo os raros.

Até aqui, no meu concerto de vida, precisei parar e trocar as cordas duas vezes, e só segui porque tive uma ampla rede de apoio que me levou adiante. É necessário garantir direitos às redes de apoio de cada paciente com doença rara. São elas que mantêm a esperança enquanto se aguarda.

Neste mês, com seu raro dia 29, que a esperança dos raros também seja amparada por direitos.

*Henderson Fürst, doutor em Direito e bioética, é presidente da Comissão de Bioética da OAB-SP. Também convive com uma doença rara

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