A aprovação da PEC das Drogas no Senado, inserindo na Constituição a lei que já criminalizava o porte e a posse de qualquer tipo ou quantidade de substâncias ilícitas, na contramão da recente liberação do uso da Cannabis na Alemanha, alimentou o debate sobre a maconha no Brasil. Uma discussão, infelizmente, mais apaixonada que racional, frequentemente com desprezo a fatos, argumentos ou à própria ciência, num Fla-Flu interminável e infrutífero.
Liberar ou reprimir? Numa batalha com aspectos morais, jurídicos e até religiosos, vemos tanto os afetados pela planta — sim, ela é danosa à saúde — quanto os beneficiados por seu potencial terapêutico — sim, ela tem aplicação médica — à espera de uma legislação sem viés ideológico. Um arcabouço legal erguido em consenso, livre de reviravoltas como a do Oregon, nos Estados Unidos, que em março aprovou a recriminalização do porte de drogas, recuando da lei que o punia apenas com multa, não mais com prisão.
A princípio conflitantes, as decisões da sisuda Alemanha e do progressista Oregon viraram arma nesta guerra cujos interesses ultrapassam a saúde pública, pois envolvem uma indústria bilionária. Uma cadeia que vai da venda da planta e derivados à administração de presídios privados, num quadro em que a liberalização pode gerar enormes lucros ou prejuízos. Para entender essa aparente contradição entre as duas posições, devemos, antes de tudo, examiná-las com cuidado.
- Criminalização de posse e porte: Em embate com o STF, Senado aprova PEC das Drogas
Numa leitura apressada, os alemães teriam dado um passo rumo à liberação total da maconha, quase a ponto de virar um paraíso dos usuários da droga. O Oregon, em contraste, teria subitamente adotado uma postura de feroz combate e punição ao consumo, numa prova cabal do naufrágio das políticas liberalizantes sobre o tema. As duas interpretações servem como luvas aos militantes dos dois cantos do ringue, mas, para alívio dos que buscam o equilíbrio, não correspondem exatamente à verdade.
Na Alemanha, pela nova lei, os maiores de 18 anos podem portar até 25 gramas de maconha na rua, 50 gramas em casa e cultivar até três plantas. O consumo em público, entretanto, tem severas restrições — é proibido fumar perto de escolas e campos esportivos. Só se pode adquiri-la associando-se a um clube de produtores sem fins lucrativos, com até 500 integrantes, e morando no país. Turismo da droga, nem pensar. A ideia é minar o crime organizado, cortando uma de suas receitas.
- PEC das Drogas: veja como votou cada senador e partido
No Oregon, um plebiscito decidiu em 2020 que os usuários de qualquer droga deveriam passar por tratamento, não ser detidos. Houve, porém, uma epidemia de fentanil, um potente opiáceo, e as mortes por overdose cresceram 42% em 2023. Mesmo sem uma ligação comprovada entre os dois fatos, a regra foi modificada. Agora, somente o usuário que não aderir ao programa de reabilitação pode ser preso, por até 180 dias. Nenhuma guinada radical, e sim uma adaptação a um novo cenário, mantendo o cerne da proposta inicial: foco na saúde, não na repressão.
No Brasil, onde o Supremo Tribunal Federal analisa o assunto, estabelecendo limites entre usuários e traficantes de maconha, os exemplos da Alemanha e do Oregon podem inspirar uma solução equilibrada, que leve em conta o impacto de uma eventual liberação sobre a saúde, sobre a segurança pública e até sobre a economia do país. Teremos de ampliar nossa rede de atendimento aos portadores de dependência, cujo número, principalmente entre os mais jovens, inevitavelmente aumentará.
Esse debate precisa evitar preconceitos e conclusões apressadas e tendenciosas, comuns no discurso dos dois lados desse intrincado xadrez. A questão é polêmica, mas nem por isso deve alargar a já enorme fissura em nossa sociedade. A saúde dos brasileiros não pode ser refém, como infelizmente temos visto, de interferências políticas, morais ou religiosas, deve ser tratada sob a luz de dados confiáveis — da ciência, enfim.
*Jorge Jaber é psiquiatra, membro fundador e associado da International Society of Addiction Medicine, associado da New York Academy of Sciences, da American Psychiatric Association (APA) e da World Federation Against Drugs (WFAD)