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Colunistas convidados escrevem para a editoria de Opinião do GLOBO.

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Artigos escritos por colunistas convidados especialmente para O GLOBO.

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1. O escritor italiano Dario Fo, ao receber o Prêmio Nobel em 1997, começa explicando o título de seu discurso, “Contra jogulatores obloquentes”. Aquele era, na verdade, o nome de uma lei instituída na Sicília em 1221 pelo imperador Frederico II da Suábia. A lei permitia que qualquer cidadão insultasse os bobos da corte, batesse neles e até mesmo, se impulsionado por forte motivação, os matasse, sem correr o risco de ser levado a julgamento e condenado. Ainda que essa lei tenha sido revogada, o espírito que a moveu permanece vivo e se abraçou a todas as artes, atento especialmente à arte dos escritores.

Em 2022, 800 anos depois dessa lei, no palco do anfiteatro do Instituto Chautauqua (no Condado de Chautauqua, norte de Nova York), um homem de 24 anos desferiu vários golpes de faca em Salman Rushdie, quase lhe tirando a vida. Aqui há uma macabra coincidência. O agressor, que tentava cumprir a sentença de pena de morte emitida pelo aiatolá Khomeini 30 anos antes, cometeu seu ato num evento que tratava da criação de lugares seguros para escritores de todo o mundo que estivessem sendo perseguidos em seus países por causa de sua atividade como... escritores.

2. Não creio que valha a pena perder tempo na tentativa de definir o sentido primeiro da literatura e o papel primordial do escritor — como era costume há algum tempo. Porém não dá para evitar associar muitos escritores, sobretudo os que não temos como esquecer, a um intelectual que desafia nosso senso comum, que perscruta atentamente as crenças e expectativas mais arraigadas e mostra algo que não esperávamos ver, que perturba e incomoda nossos espíritos. Mas, é claro, isso não é uma regra.

Duas imagens têm me acompanhado quando penso no trabalho dos escritores que admiro. O escritor espanhol, Javier Marías, numa entrevista à revista Paris Review, fala de um jogo luz e escuridão que atribui, sem muita convicção, a William Faulkner: “Acender um fósforo no meio da noite num descampado não permite ver nada mais claramente, apenas ver com clareza toda a escuridão em volta”. Eu dou um passo a mais que Marías: a literatura, a filosofia e as ciências sociais fazem não mais que isso, acendem um fósforo para nos darmos conta “do tamanho da escuridão que existe”.

A outra imagem vem de Margaret Atwood. Para ela, escrever talvez tenha alguma relação com, de um lado, o vazio, a desorientação, o crepúsculo e novamente “a escuridão” em que se encontra o escritor e, de outro, com seu desejo ou compulsão de entrar nessas trevas para, quem sabe?, iluminá-la e trazer algo de volta à luz — ainda que suspeite que fracassará nesse objetivo.

Capa do audio - Bernardo Mello Franco - Conversa de Bastidor

Parece, mas não estou certo, que os escritores mais interessantes sempre estão caminhando na direção das zonas sensíveis da alma humana, não para nos exaltar, mas para expor nossa ruína, nosso lado silencioso e sombrio. E, com isso, correm o risco de sofrer as consequências de sua infração, ter rompido uma fronteira.

3. Há um ponto curioso no caso de Salman Rushdie que pode explicar por que alguém se sinta no direito de aniquilar um escritor. O autor do atentado conhecia a sentença contra Salman Rushdie (a sentença é, para ele, clara e toca no que lhe era mais caro e sagrado), mas ele nunca lera “Versos satânicos”. Do mesmo modo que, segundo Dario Fo, o imperador Frederico II era considerado um homem “ungido por Deus”, o agressor de Rushdie agiu guiado pelo mais soberano sentimento de pureza e santidade: curar o mundo de um mal. Tal santidade, diga-se, só poderia ser consumada numa ação impiedosa contra aquele mal visível, com volume e rosto; não fosse isso — a santidade e moralidade do desejo de sangue —, seu ato seria vergonhoso e inaceitável, como o do ímpio.

Para muitas pessoas, há ao menos uma boa justificativa para seu direito legítimo de agredir, socar e aniquilar alguém que escreva coisas que ofendam seu íntimo senso de decência, suas crenças mais fundamentais, as que sustentam o próprio sentido da vida. A justificativa pode ter muitos nomes, a Santidade, o Bem, a Revolução, a Justiça. Basta apenas que o escritor desafie os valores, religião, partido, humor do Santo, do Bom, do Revolucionário, do Justo. Para a pessoa adquirir o direito legítimo de socar um escritor, basta, para ela, que algo sagrado tenha se quebrado por causa de uma palavra profana. Qual o critério? A lucidez do Justo é a mesma lucidez do fanático. Como diz Amós Oz, para um problema extremamente difícil, talvez impossível de ser resolvido de modo plenamente satisfatório, o fanático tem respostas simples e definitivas inscritas em alguma tábula original. Para ele, o Justo ou fanático, desde o início, tudo está claro, luminoso, não há dúvida, incerteza, vazio. Essa pessoa, inclusive, como o agressor de Rushdie, nem precisa ter lido o que o escritor escreveu. Ela sabe apenas que o texto escrito, a difamação cravada na palavra, não pode prosperar para que o mal não prospere.

4. Há alguns dias li: “Uma lástima que ele não tenha dito isto em (sic) minha frente”. Assim um destacado personagem da cena pública brasileira escreveu numa rede social. Ele se referia a uma entrevista do escritor Francisco Bosco concedida a Gabriel Zorzetto e publicada no jornal O Estado de S. Paulo no último dia 22 de maio. A entrevista tratava do lançamento do mais recente livro de Bosco, “Meia palavra basta” (Record, 2024, 124pp). Mas o que provocou a reação transcrita no início deste parágrafo não foi o conteúdo da entrevista e, nem de longe, o assunto do livro. O editor do Estadão decidira usar como chamada para a entrevista a seguinte frase: “ 'Olavo de Carvalho tinha razão’, diz Francisco Bosco sobre a esquerda nas universidades”.

Uma vez que Bosco se define como “intelectual público”, logo no início da entrevista, antes mesmo de abordar o tema do livro “Meia palavra basta”, Gabriel Zorzetto pergunta se a expressão “intelectual” não estaria associada a uma atitude arrogante. Bosco então discorre sobre a noção de “intelectual público” em distinção ao “intelectual acadêmico”. Ambos têm, a rigor, a mesma formação acadêmica, mas o “intelectual público” tem atuação fora dos limites da universidade, dos periódicos especializados e dos congressos; ele atua nos espaços da cultura, procura refletir sobre os temas do debate público e se dirige a um auditório de não especialistas. Assim atuam os escritores, cientistas políticos, artistas, críticos da cultura e jornalistas. A certa altura, ele comenta um fato largamente conhecido, mas que se decidiu não dever ser objeto de discussão: em certas áreas universitárias há pouca diversidade teórica em política e, em geral, há concentração numa perspectiva ideológica e política de esquerda. Num comentário marginal, ele diz, a despeito de discordar explícita e veementemente de Olavo de Carvalho, que era obrigado a reconhecer que “a palavra ‘intelectual’ hoje é vista sob suspeita de elitismo e concentração ideológica”. Ponto.

Eis todo o mal. Contra a infâmia, os Justos não podem omitir sua fúria santa.

Não posso deixar de citar Amós Oz novamente. Para ele, a boa literatura “nos conta o que não sabíamos sobre nós mesmos e sobre os outros”. E, o que é mais importante, fala de “algo que não queríamos saber”. Um escritor que não faça isso com seus textos é monótono, propagandista ou oferece seus préstimos para o simples entretenimento (o que não é algo ruim assim).

5. Bosco é autor de uma importante obra de crítica cultural e política. Entre seus inúmeros livros de ensaios, literatura e crítica, se destacam dois, “A vítima tem sempre razão?” (Todavia, 2017) e “Diálogo possível” (Todavia, 2022). O primeiro pode ser considerado a obra que inaugura entre nós uma discussão ainda muito rumorosa sobre o identitarismo, o movimento woke (que vem substituindo os ideais universalistas da esquerda por pautas de grupos sociais específicos, “historicamente oprimidos”) e o novo espaço público das disputas políticas, as redes sociais. Sob muitos aspectos, é um trabalho que desafia e provoca alguns dos pilares da cultura política da nova esquerda no Brasil. Nesse livro, Bosco não escreve o que as pessoas queriam ler e apresenta uma ideia difícil, arquitetada em argumentos longos e complexos, o que exige grande esforço daqueles que aceitem enfrentar o assunto.

Em “Diálogo possível”, resultado de uma pesquisa de grande fôlego, com o eloquente subtítulo “Por uma reconstrução do debate público brasileiro”, Bosco propõe um caminho para nossa crise política. De fato, os últimos ciclos eleitorais testemunham a tendência de calcificação de grupos “heterogêneos que têm ideias ou sentimentos radicalmente divergentes do que seria o bem comum...”. Esse é um fato social, e os intelectuais têm a obrigação de se debruçar sobre isso. “Diálogo possível” é um trabalho intelectualmente muito sólido que passeia por cultura, artes, religião, história, política e economia; suas 400 páginas defendem uma ideia e uma esperança.

Mas nada do que Chico Bosco escreveu até hoje, nenhum de seus argumentos, nenhuma de suas interpretações de autores que vão da tradição filosófica, à economia e à critica social, nenhuma de suas propostas para a recuperação do espaço público do debate democrático entre atores em legítimo desacordo ideológico, nada disso parece importar. Com o brevíssimo trecho, objeto da “lástima” do personagem que citei acima, uma lacônica referência a Olavo de Carvalho, Bosco parece ter maculado uma sacralidade e evocado o nome do diabo. Como as universidades, especialmente as Humanidades, lidam com a necessária diversidade de opiniões e visões de mundo que deve caracterizar uma sociedade democrática e aberta, uma sociedade que não apenas deve tolerar, mas incentivar o conflito respeitoso entre conservadores e progressistas, direita e esquerda? Qual o problema de fazer essa pergunta e a investigar? É tão difícil assim enfrentá-la e responder a ela? Onde está o incômodo?

6. Uma tempestade inteira numa gota d’água. E aquilo que deveria dar início a um intenso debate, provocando diferentes manifestações, argumentos em desacordo, e que poderia envolver diversos atores interessados, se tornou não mais não menos que um festival de ataques ao escritor — agressões que invadiram até mesmo sua vida familiar. Tal qual o fanático que esfaqueou Salman Rushdie, entre as vozes que se levantaram, ninguém pareceu ter lido nem mesmo a entrevista de onde foi sacada a frase sobre Olavo de Carvalho — muito menos os livros de Bosco que tratam de modo tão sério o abismo onde se encontra nossa democracia. Leu-se, na melhor das hipóteses, a chamada que o editor escolheu para a entrevista. Só. Aqui há uma regra: para adquirir direito legítimo de socar um escritor, não o leia.

Não sou desses que pensam que a polarização e o ódio foram inventados pelas redes sociais. Mas de uma coisa estou certo: elas têm facilitado muito o trabalho do fanatismo. Pessoas que antes precisavam da fé e de líderes carismáticos agora só necessitam de frases, cortes, fragmentos para não somente formar seus juízos, mas para adquirir o direito legítimo de socar outra pessoa.

Por tudo isso, é exatamente neste momento que Bosco se torna um intelectual indispensável a ser lido e discutido, mesmo na universidade – que, até onde sei, continua atada à sociedade e deve investigar seus temas mais relevantes. Além de ter uma larga cultura intelectual, estudar detidamente o pensamento progressista e conservador, ele escreve e fala abertamente sobre isso e convida as pessoas a um debate aberto e não dogmático de modo realmente sincero. As pessoas podem discordar de seus argumentos e ingressar no desafio do debate. Isso é muito bom. Os desacordos e a tolerância aos desacordos são essenciais para uma democracia; a perda desse horizonte é um passo decisivo para sua morte. Muitos têm aceitado o convite de Bosco, assim como de outros autores como o jornalista Joel Pinheiro ou o filósofo Wilson Gomes..., sim muitos têm aceitado debater, menos os que se sentem com o direito legítimo de socar um escritor. São os Santos e Justos, pessoas cuja barreira das próprias convicções é impossível romper.

PS.: A propósito, “Meia palavra basta” é um pequeno diamante. É um livro de aforismos, um dos estilos de execução mais difícil. Envolve perfeito domínio da língua, enorme capacidade de síntese e a habilidade para tratar de temas áridos com poesia e, muitas vezes, humor. Por incrível que possa parecer, é um livro para ser lido e criticado.

*Waldomiro J. Silva Filho, nascido em Camacã, Bahia e torcedor do Fluminense, é professor titular de filosofia da UFBA, pesquisador do CNPq e autor, entre outros, de “A calamidade” (ensaio, CULT, 2022), “Os dias” (romance, Patuá, 2023) e “Epistemology of Conversation” (filosofia, Springer, 2024)

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