Era uma vez uma reforma tributária que tratava os medicamentos como bem essencial para a população brasileira.
Era a reforma tributária da primeira versão da PEC 132/2023, aprovada na Câmara dos Deputados e no Senado, que garantia isenção tributária total nas compras públicas de remédios e oferecia redução de 60% do imposto cobrado no varejo aos usuários de medicamentos tarjados.
De lá para cá, equívocos diversos desvirtuaram o projeto original e comprometem o objetivo pretendido. Ainda no Parlamento, no fim do ano passado, e na calada da noite, a Câmara dos Deputados decidiu que as imunidades fiscais dos medicamentos deveriam ser regulamentadas por lei complementar.
Apesar da surpresa, havia a esperança de que o governo federal corrigisse o grande erro. Engano. O Projeto de Lei Complementar (PLP) que o governo federal enviou recentemente para o Congresso Nacional é um monstrengo, um escárnio para com os doentes brasileiros.
![Capa do audio - Linha Aberta - Carlos Alberto Sardenberg](https://s2-oglobo.glbimg.com/r0-N_4wDim_Jlg6kd5bB8UjNClQ=/108x108/https://estaticos.globoradio.globo.com/fotos/2019/02/1a191912-89f4-4838-a3a7-fb4a59b014fe.png.300x300_q90_box-0%2C0%2C6250%2C6250_detail_upscale.jpg)
Pois, apesar de preservar formalmente o regime diferenciado dos medicamentos, na prática o PLP cria várias distorções e iniquidades que anulam os benefícios.
De cara, o texto reduz a quantidade de medicamentos que hoje já são contemplados com isenção tributária: lista 850 substâncias elegíveis à redução de 60% da alíquota e 383 substâncias elegíveis à redução de 100%, quantidade inferior à da atual relação de produtos isentos de PIS/Cofins. Mesmo considerando que muitas substâncias foram retiradas do mercado, é flagrante a falta dos produtos que fazem parte da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename).
Exemplo de distorção e iniquidade: listado na Rename e excluído do PLP, o ibuprofeno custa hoje R$ 97,45 (600mg, caixa de 30 comprimidos). Seu preço subiria 12%, para R$ 109,14.
Também listada na Rename, a substância cetoconazol custa hoje R$ 68,49 (200mg, caixa de dez comprimidos). Como está fora da Lei Complementar, seu preço aumentaria 12%, para R$ 76,71.
Outro caso: medicamentos de alto custo para o tratamento de vários tipos de câncer continuariam custando até R$ 21.600. Se não pagassem imposto, custariam menos de R$ 14.600, redução de 33%.
Era uma vez a competência da equipe econômica do governo nas questões relativas à saúde. Ela se perdeu nos meandros da burocracia.
O governo ignorou completamente as propostas que buscavam modernizar a legislação para garantir a desoneração a medicamentos, com base em critérios que não ficassem defasados no tempo — como definir que todos os medicamentos de prescrição fossem contemplados, sem depender da retrógrada solução das listas, que já se provaram ineficazes.
Resumindo: o governo criou “um frankenstein”, como reconheceu reservadamente um integrante do alto escalão do Ministério da Saúde.
Mas ainda há tempo de sanar o problema. Cabe ao Congresso Nacional restabelecer o espírito original da PEC 132/2023, contemplando o anseio do país de ter um sistema tributário justo para os produtos e serviços de saúde. Será uma grande vitória da sociedade brasileira.
*Nelson Mussolini é presidente executivo do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos e integrante titular do Conselho Nacional de Saúde