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GERADO EM: 20/06/2024 - 00:07

Aborto em casos de estupro: falta de apoio médico e debate sobre legalização.

Meninas vítimas de estupro sofrem com a gravidez indesejada e falta de apoio médico. Debate sobre a legalização do aborto em casos de estupro. Abdicação de socorro por motivos religiosos e políticos. Feminismo e direitos das mulheres em foco.

A menina mal completara 12 anos ao ser estuprada. Sua história resume o destino de outras meninas que engravidam na ocasião do estupro. Sem saber o que é gravidez, chega ao hospital, agarra um ginecologista pelo braço e suplica:

— Doutor, tira essa coisa de dentro de mim? Me salva.

Pergunta com que expõe sua impossibilidade de imaginar um bebê no ventre — condição primeira para que uma mulher deseje levar a gravidez a termo. “Me salva”, um apelo ao próximo, capaz de acudir seu desamparo e, assim, retirá-la da angústia avassaladora em que está. Palavras que provocam no médico uma transformação.

Ela “foi a maior professora de minha vida”, confessa, em entrevista a um jornal o doutor Cristião Rosas, ex-coordenador no Brasil da Rede Médica pelo Direito de Decidir (Global Doctors For Choice), fechada no ano passado pela Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo. Acossado pelo conflito ético entre fé e vida, o médico, de formação protestante e presbiteriano, não teve mais dúvidas sobre a legitimidade da interrupção da gravidez em vítimas de estupro. Um anjo de olhos tristes revolucionou seu saber médico e validou sua fé:

— Rezo todo dia e toda noite.

O que o teria levado a tal escolha, se não a convicção de que a fé não pode admitir omissão de socorro ao outro? A fé religiosa é algo subjetivo, que não diz respeito à tragédia da violação.

Nada há de mais verdadeiro que a ética em jogo nesse caso para nortear nosso dever político de exigir que o Projeto de Lei de equiparar penas por aborto depois de 22 semanas a homicídio seja sumariamente extinto. Trata-se de um plano que valida outro tipo de estupro, o estupro moral, promovido pelo ódio milenar às mulheres. No Ocidente, desde a Santa Inquisição, a tradição de atribuir às mulheres toda sorte de mal e de castigá-las prevalece. Mulheres que supostamente faziam pacto com o diabo, as bruxas pagavam seus “delitos” com a própria vida.

No Brasil atual, um pastor evangélico, teólogo e deputado, autor do referido PL, negando os perigos de vida que recaem sobre mulheres precocemente engravidadas, toma o caminho oposto ao do médico de fé protestante: arregimenta políticos fundamentalistas a votar pela punição de milhares de meninas.

“Inquisidores sem fogueira!” Um bando de estupradores e estupradoras moralistas que pretendem realizar suas fantasias sádicas e obscenas penalizando-as pelo crime que sofreram. Cenas pornográficas protagonizadas por cidadãs e cidadãos acima de qualquer suspeita invadirão nossas casas, caso a sociedade cesse de se revoltar. Mas, atenção: a misoginia não é prerrogativa de religiosos. Ela está também no universo político daqueles que, em nome do poder, se dizem ateus e politicamente corretos.

Se a diferença sexual da mulher causa horror, nossas meninas sofrem duplamente o efeito dessa aversão. Indefesas, passam pela dor inenarrável do estupro; depois sobrevém a humilhação infligida por médicos e hospitais que não escutam o pedido de socorro — “Me salva” — e se recusam a retirar a “coisa” de dentro delas.

*Betty Bernardo Fuks, psicanalista, é doutora em comunicação e cultura pela UFRJ

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