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Artigos escritos por colunistas convidados especialmente para O GLOBO.

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Martin Luther King Jr. disse que o amor é a única força capaz de transformar um inimigo em amigo. Silas Malafaia disse que “amigo do meu inimigo não é meu amigo”. Disse isso para cutucar o governador Tarcísio de Freitas. A espiritualidade promove a ética do amor aos inimigos, a conspiritualidade aposta na inimizade e, segundo a retórica de Malafaia, transforma até amigo do inimigo em seu próprio inimigo. Que pena, pois mata a possibilidade de que o amigo do meu inimigo seja elo de diálogo e de reconciliação entre nós.

Na lógica da conspiritualidade a eliminação dos inimigos é a prova do amor aos amigos de raça e religião. É desse modo que Vladimir Putin manipulou as palavras de Jesus para justificar a invasão da Ucrânia ao povo russo: “Não há maior amor que dar a vida pelos seus amigos” (Jo. 15.13-15). No entanto, na passagem citada, Jesus não se referia a nenhuma empreitada militar e, quando a tensão com sua prisão no Getsêmani escalou para a violência, ele ordenou que Pedro guardasse a espada.

O ódio ao mal ocupa o centro nas pregações dos apóstolos da conspiritualidade. Porém, como o “coisa-ruim” nunca dá as caras, resta identificá-lo em seus representantes, sejam eles pessoas, etnias, classes, movimentos sociais ou partidos políticos. Identificados os agentes do mal, o passo seguinte é odiá-los e combatê-los. É assim que se prova o amor à pátria, à família e à religião, segundo o desevangelho da conspiritualidade.

O conceito de conspiritualidade pode ser compreendido a partir da conversão das identidades religiosas em identidades políticas. O neologismo conspiritualidade (ou conspirituality, em inglês) foi cunhado por Charlotte Ward e David Voas, em 2011, para descrever fusões entre teorias conspiratórias e espiritualidade. Cristãos aprendem desde cedo a dividir o mundo entre o bem e o mal, o espírito e a carne, Deus e o diabo. O pensamento dualista é ainda cultivado na ideia de uma batalha final, o Armagedom. Quando líderes religiosos se valem de teorias conspiratórias para identificar os agentes do mal e conclamam os fiéis a aderir a uma identidade política específica como forma de expressar sua lealdade a Deus, a espiritualidade se transforma em conspiritualidade.

Capa do audio - Bernardo Mello Franco - Conversa de Bastidor

O teólogo croata Miroslav Volf salienta que todas as grandes religiões em suas origens e melhores expressões são religiões universais e, portanto, tratam cada pessoa como parte da humanidade, mais que como parte de alguma “tribo política”. A conspiritualidade, ao se apresentar como defensora de Deus no terreno da política e por meio de instrumentos políticos, rebaixa o Deus universal dos monoteísmos abraâmicos para a condição de criado e cabo eleitoral de políticos populistas. A identificação de grande parte dos evangélicos com o discurso da extrema direita segue a dinâmica acima: a identidade religiosa é engolida pela identidade política.

A espiritualidade não nega a existência do mal, mas, ao se ajoelhar para beber nas águas do amor universal, vê na própria imagem, refletida na água, os males atribuídos aos inimigos. O poeta Chico César está certo na súplica nestes tempos de conspiritualidade: “Deus me proteja de mim e da maldade de gente boa, da bondade de gente ruim”.

*Valdinei Ferreira, doutor em sociologia, é pastor presbiteriano independente e criador do Mapa Centrante, iniciativa na área da saúde mental

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