Artigos
PUBLICIDADE
Artigos

Colunistas convidados escrevem para a editoria de Opinião do GLOBO.

Informações da coluna

Artigos

Artigos escritos por colunistas convidados especialmente para O GLOBO.

Por

RESUMO

Sem tempo? Ferramenta de IA resume para você

GERADO EM: 14/07/2024 - 00:05

Flanelinhas na Urca: caos no estacionamento

Flanelinhas vendem vagas de estacionamento fictícias na Urca, causando desordem urbana. O problema persiste apesar das multas e do choque de ordem de 2009. A falta de soluções eficazes mantém a situação caótica.

O casal de cidadãos, a bordo do Hyundai Tucson preto, estaciona caprichosamente em frente à entrada da minha garagem. Da janela, com vista de camarote para a rua, aviso-lhes que ali não se pode estacionar, pois — como grifado no calçadão em letras garrafais — é GARAGEM.

— Mas o rapaz falou que podia — defende-se o cidadão nº 1.

— Que rapaz? — pergunto.

Cidadã 2:

— O rapaz na rua.

Eu:

— O flanelinha?

O casal, uníssono:

— Isso.

Encerrada a conversa, os cidadãos dão as costas e, cadeiras de praia a tiracolo, caminham impávidos em direção à orla.

Eis a Urca, formoso recanto da Zona Sul carioca pelo qual há anos me apaixonei, onde escolhi viver e que me acolhe desde então. E que hoje arrisca tornar-se o retrato da desordem urbana.

Não quero ser ranzinza. O Pão de Açúcar, a histórica Praia Vermelha, a curvilínea mureta à beira-mar, o Corcovado ao pôr do sol — que outro bairro oferece tanto charme por metro quadrado?

O estacionamento é escasso? Sem problemas: é só rodar devagar pelas ruas que logo aparece o valet du jour, inconfundível, de bermuda, havaianas, pochete, boné e camisa do Flamengo ou quiçá do Fluminense (a guilda dos guardadores é ecumênica).

Um pretenso líder do grêmio desfila com apito, outro se posta em meio à pista — melhor para assediar a freguesia. Conduzem o motorista, não raro pela contramão, a encaixar o carro onde der. Pior para o pedestre, o trânsito e a garagem do morador. A vaga sai a R$ 40 ou mais. Sem dinheiro na mão? Tranquilo, irmão. Aceitamos Pix.

O flagelo não é só carioca. Nova York já lidou com os squeegee men, bandos de rapazes que, rodos na mão, exigem dinheiro dos motoristas após jogar-lhes água turva com sabão no para-brisa. A moda pegou no Rio. O México tem seus franeleros; a Espanha, os gorillas. No Egito, são os sayes; na África do Sul, os car guards. Os romenos negociam com a quadrilha de parcagii.

O tema inspira dissertações, pesquisas de think tanks, mobilização sindical, projetos de lei e até libelos dos arautos da inclusão social. As soluções são tão efêmeras quanto vagas num domingo na Urca.

Os flanelinhas representam uma fração do vasto mercado de subemprego. Só que eles travestem seu crime de comércio. Vendem um bem que não têm (a vaga), em troca de um serviço ficcional (guardar o carro) e cobram para não assaltar o cliente.

  • Cometem delitos — inclusive extorsão e afronta ao artigo 47 da Lei das Contravenções Penais — que implicariam multa, prisão ou ambas, não fosse pela nossa estranha indulgência com a barbárie alheia.

É fato que denunciar abusos nunca ficou tão fácil. Pelo serviço digital 1746, já acumulo 19 protocolos de atendimento desde 2018. Mas, apesar de centenas de multas emitidas pela Guarda Municipal, e até ameaças de prisão da Polícia Militar, o problema sempre volta.

Há alguns anos, uma solução parecia possível. Era 2009, e o então prefeito declarara o “choque de ordem” para acabar justamente com a cultura de baderna e pequenos delitos em que florescia o flanelismo. Quinze anos depois, Eduardo Paes está de volta à prefeitura e é novamente candidato à reeleição. O choque de ordem ficou no retrovisor e o flanelinha, logo ali na esquina. Sei, vejo tudo do camarote da minha janela.

*Mac Margolis, jornalista americano, é autor de “O Último Novo Mundo: a conquista da fronteira amazônica”

Mais recente Próxima Quem come quem?