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GERADO EM: 20/07/2024 - 00:05

Relação delicada: Lula e militares pós-ditadura

Lula reluta em perturbar os militares, mantendo o conforto deles ao lidar com questões de direitos humanos pós-ditadura. A Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos é destacada, mostrando a resistência militar e a pressão para reabri-la, mesmo sob críticas. A relação entre governos e militares, incluindo a decisão do STF em 2010, revela a complexidade do tema. O artigo destaca a importância histórica da comissão na luta pelos direitos humanos no Brasil.

Não é de hoje que Lula veste luvas de pelica para tratar com militares. Se Lula 3 demorou 18 meses para reabrir a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), fechada no apagar das luzes do governo Bolsonaro, não foi (apenas) pela ressaca com o bolsonarismo. Os setores mais aguerridos das Forças Armadas estiveram sempre à espreita da Nova República. No pós-1988, disseram ter se retirado da política, ma non troppo.

A história da CEMDP está ligada à nossa redemocratização e à institucionalização dos direitos humanos. Depois de terem sido negligenciados no contexto pós-Anistia (1979), as organizações e militantes atuantes na denúncia de desaparecimentos e mortes pela ditadura estabeleceram alianças eficazes para emplacar uma comissão oficial no primeiro governo Fernando Henrique (1995). Naquele contexto e até muito recentemente, o ônus de provar que tinham sido vítimas do autoritarismo recaía sobre os familiares.

Apesar de seus limites funcionais e debaixo da crítica dos movimentos de familiares, a CEMDP conseguiu levar adiante os primeiros esforços dentro do Estado brasileiro no sentido de começar a instaurar formas pecuniárias de reparação aos afetados. De modo mais irônico, e menos conhecido, as Forças Armadas tinham um representante na comissão — fato que denota como, à época, os militares tinham saído da grande política e rumado para as políticas dedicadas a lembrar o passado, entre outras.

Apesar da distância importante que separava tucanos e petistas, os governos Lula e Dilma continuaram e ampliaram as políticas de FH na seara dos mortos e desaparecidos da ditadura. Seus resultados ficaram aquém do que queriam familiares e militantes da causa e além, muito além, do que queriam os militares. Em 2007, durante a gestão de Paulo Vannuchi no Ministério dos Direitos Humanos, a CEMDP publicou um livro com seus achados. Lula compareceu ao lançamento, mas antes precisou se desembaraçar de generais que o cercaram no elevador sugerindo que não fizesse tal desfeita aos militares.

Isso não foi nada se comparado à grita das três Forças e do então ministro da Defesa, Nelson Jobim, na altura do lançamento do terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos, em 2009. Quando os militares foram confrontados com a intenção do governo de criar uma Comissão Nacional da Verdade (CNV) para tratar, entre outros assuntos, dos mortos e desaparecidos, mas desta vez com o ônus da prova transferido ao Estado, eles vieram a público e convulsionaram a política nacional. Preservando o conforto político dos militares, Lula voltou atrás e assinou novo decreto tentando apaziguar os humores.

Não foram apenas os governos e presidentes civis que preservaram essa posição confortável. Em 2010, o STF decidiu por maioria manter a segurança legal dos responsáveis militares pela violência de Estado na ditadura.

Seja como for, ao lado da Comissão da Anistia e da já extinta CNV, a CEMDP foi pioneira na trajetória de alianças pelas quais movimentos de familiares e partes do Estado brasileiro fizeram avançar a agenda dos direitos humanos. Quando, no final de 2022, Bolsonaro acabou com a CEMDP, ele deu vazão à insatisfação da parte radicalizada dos militares com essas ações para relembrar e responsabilizar as figuras do passado. Agora, em 2024, sob pressão civil e internacional, Lula tardou em reabrir a CEMDP, provavelmente porque se debatia, mais uma vez, com o objetivo de manter o longo conforto dos militares.

*Cristina Buarque de Hollanda é professora e pesquisadora do Iesp-Uerj e da New York University Abu Dhabi, José Szwako é professor e pesquisador do Iesp-Uerj. Ambos são autores de “Ditadura no Brasil: esquecer, lembrar, celebrar”, com lançamento previsto para 2025

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