Eduardo Affonso
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Eduardo Affonso

Arquiteto e cronista

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Pouca coisa pode parecer mais anacrônica, a esta altura do século XXI, que concurso de miss. O que já rendeu manchetes, capas de revista e torcidas organizadas diante da TV (em preto e branco, com Bombril na antena) hoje só é notícia quando algo excepcional acontece. Como, em 2015, Miss Colômbia ter sido, por poucos minutos, a terráquea mais bela de todas as galáxias — até se darem conta de que o título cabia à Miss Filipinas.

Tudo era mais simples quando os padrões estéticos se baseavam em dogmas. Ser jovem (não se confiava em miss com mais de 28 anos); nem alta nem baixa (1,70m estava de ótimo tamanho); magra (a gordofobia ainda não tinha sido inventada). Curvas, sim, mas devagar (os famosos 90cm de busto, 60cm de cintura e 90cm de quadril, nem uma polegada a mais — que dirá duas, como as que fizeram a lenda de Martha Rocha). Solteira (virgem seria pedir muito) e, de preferência, branca e ocidental.

Era praticamente uma receita de mulher — mais para norma da ABNT que para a poesia de Vinícius de Moraes: Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e/Seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem/Com olhos e nádegas.

O feminismo criou caso com os concursos — pela objetificação do corpo feminino, pelo tratamento. Miss equivale a “senhorita” e, a partir dos anos 1970, consolidou-se o uso de Ms, para que a mulher deixasse de ser referenciada a partir do estado civil. À exceção do pronome (talvez por ter virado marca registrada), muita coisa mudou no certame: casadas ou divorciadas, com filhos, acima dos 30, com alto índice de massa corporal ou nascidas com sexo biológico masculino já podem concorrer (ganhar são outros quinhentos). A desenvoltura intelectual há algum tempo vem contando quase tanto quanto a graça em traje de banho ou a capacidade de desfilar em “traje típico” sem passar muita vergonha.

E as misses vão se reinventando. Saem de cena as princesas que liam “O pequeno príncipe”, entram as protagonistas que protestam, se afirmam, se engajam. Em “Miss Sarajevo”, Bono louvou a beleza como ato de resistência ao horror da guerra. Na Nicarágua, a população desafiou a proibição de manifestações e do uso da bandeira nacional, imposta pela ditadura de Daniel Ortega, e celebrou o título de Miss Universo concedido a Sheynnis Palacios, modelo que pagou a universidade (depois fechada pelo governo) vendendo bolinhos de mandioca e participou ativamente dos protestos de 2018 em Manágua.

É significativo que regimes opressores não apenas se empenhem em calar as mulheres, mas imponham véus e burcas para cassar sua beleza.

Não era a dotes físicos que se referia Emily Dickinson quando escreveu (aqui, na tradução de Cecília Meireles): Morri pela beleza, e ainda não estava/Meu corpo à tumba acostumado/Quando alguém que morreu pela verdade/Foi posto do outro lado./Brandamente indagou: “Por quem morreste?”/“Pela beleza”, disse. “Pois/Eu, foi pela verdade. Ambas são o mesmo./Somos irmãos, os dois”.

“A beleza salvará o mundo”, profetizou Dostoiévski. Ele também não falava das misses. Mas, quando cabelos soltos desafiam a teocracia dos aiatolás e uma beldade vira símbolo contra a tirania sandinista, é reconfortante imaginar que essas duas irmãs, verdade e beleza — literal ou metaforicamente — possam mesmo nos salvar.

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