Elio Gaspari
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Elio Gaspari

Jornalista e escritor

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Elio Gaspari

Elio Gaspari é um jornalista e escritor. Em 2016, foi homenageado com um Prêmio Vladimir Herzog.

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RESUMO

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GERADO EM: 04/08/2024 - 04:30

Desafios do governo de Lula diante da crise na Venezuela

O governo de Lula enfrenta desafios com a crise na Venezuela, onde Maduro reivindicou vitória em eleições contestadas. Lula oscila em seu posicionamento, enquanto setores do PT apoiam Maduro. A imprensa e políticos brasileiros criticam a eleição venezuelana. Paralelos controversos são traçados com situações políticas nos EUA. Enquanto isso, uma questão legislativa sobre planos de saúde aguarda ação da ANS para ser resolvida.

Alguma coisa aconteceu no coração do governo. No dia 17 de julho, o presidente venezuelano Nicolás Maduro disse que o resultado da eleição de domingo passado poderia levar a um “banho de sangue” com “uma guerra civil fratricida”. Ele batalhava por um terceiro mandato.

No dia 22, durante uma entrevista a agências internacionais de notícias, Lula declarou-se “assustado” com a fala do colega:

“Eu já falei para o Maduro duas vezes, e o Maduro sabe, que a única chance de a Venezuela voltar à normalidade é ter um processo eleitoral que seja respeitado por todo o mundo”.

Recebeu um imediato contravapor de Maduro que, sem citá-lo, recomendou-lhe tomar chá de camomila.

No dia 28 veio a eleição, e foi o que se viu.

Na terça-feira, dia 30, Lula assustou quem o ouvia ao dizer que “não tem nada de grave, nada de anormal” e recorreu a um precedente nacional:

“Sempre que tem um resultado apertado as pessoas têm dúvidas. Aqui no Brasil você viu o que aconteceu. Mesmo quando o Aécio (Neves) perdeu para a Dilma e entrou com recurso para anular a eleição”.

Paralelo absurdo. Em 2014, ninguém mais contestou a lisura da reeleição de Dilma Rousseff. Ela não fechou as fronteiras terrestres, nem barrou a entrada de observadores internacionais. Anos depois, o próprio Aécio revelou que entrou com a ação “só para encher o saco”.

Mesmo para uma pessoa que se declara “uma metamorfose ambulante”, Lula foi de uma ponta a outra na questão, como se estivesse tratando de algo sem importância.

Desde domingo passado já morreu mais de uma dezena de pessoas na Venezuela, e mais de mil foram encarceradas. O Centro Carter, instituição criada pelo ex-presidente americano Jimmy Carter, que vinha acompanhando a campanha, declarou que “a eleição presidencial da Venezuela de 2024 não se adequou a parâmetros e padrões internacionais de integridade eleitoral e não pode ser considerada democrática.” (A presença do Centro Carter tinha sido apresentado pelo embaixador Celso Amorim como indicação da lisura de Maduro).

É visível que desde domingo o governo de Lula se equilibra como uma Rebeca Andrade na prova das barras assimétricas. Não houve nada de grave, mas Brasília teve que garantir a segurança da embaixada da Argentina em Caracas.

As repórteres Marianna Holanda e Catia Seabra, lançaram luz sobre a metamorfose.

Na noite de segunda-feira, antes da fala de Lula, a Executiva Nacional do PT reconheceu a vitória de Maduro. Horas antes, Gleisi Hoffmann e Cleide Andrade, presidente e tesoureira do PT, estiveram com Lula no Palácio da Alvorada.

Esta não foi a primeira vez que Lula e a máquina do PT tomaram caminhos diferentes. Quando a crise lhe dá tempo, Lula apara as arestas e prevalece. A encrenca venezuelana foi muito rápida. Nesse caso, o ronco bolivariano de uma parte do PT prevaleceu.

Assim como na reeleição de Maduro, há outras áreas de atrito entre o governo Lula 3.0 e correntes do PT. A crise venezuelana um dia poderá sair da agenda nacional, mas a gestão da economia, com seus reflexos políticos, continuará viva.

Apoiar Maduro é uma coisa; minar a gestão da economia é outra. Bem outra é sabotar uma política de contenção dos gastos públicos ou flertar com uma polícia que possa chamar de sua.

Lula e a imprensa

Na sua fala de terça-feira, Lula disse:

“Vejo a imprensa brasileira tratando como se fosse a Terceira Guerra Mundial. Não tem nada de anormal.”

Noves fora a anormalidade da eleição venezuelana, fica a impressão de que o problema estava na imprensa, essa malvada.

Para um país que ralou quatro anos de Bolsonaro, Lula é um campeão na sua relação com os jornalistas. Mesmo assim, ele mostrou que ainda tem a alma envenenada com a espécie.

O líder de seu governo no Senado, Randolfe Rodrigues, disse o seguinte:

“Uma eleição em que os resultados não são passíveis de certificação e onde observadores internacionais foram vetados é uma eleição sem idoneidade.”

E Marina Silva, ministra do Meio Ambiente, também falou:

“Na minha opinião pessoal, eu não falo pelo governo, não se configura como uma democracia. Muito pelo contrário. O Brasil está muito correto quando diz que quer ver o resultado eleitoral, os mapas, todas as comprovações de que de fato houve ali uma decisão soberana do povo venezuelano.”

EUA x Venezuela

Tudo bem, Nicolás Maduro é um ditador e roubou o resultado eleitoral. Mesmo assim, os ultimatos do Departamento de Estado americano contém uma hipocrisia protegida pela amnésia.

Em dezembro de 2000, a Corte Suprema dos Estados Unidos deu um segundo mandato a George Bush II mandando suspender a contagem de votos decisivos da Flórida. O argumento de pelo menos um juiz era de que a recontagem provocaria um debate interminável.

Passaram-se oito anos de Obama. Ele foi sucedido por Donald Trump, que o acusava de não ser americano. (A mentira dizia que ele havia nascido no Quênia.)

Trump ficou quatro anos na Casa Branca, perdeu a eleição, disse que roubaram-lhe a vitória. Tentou usar seu vice para melar a proclamação do resultado e estimulou uma marcha sobre o Capitólio que resultou numa selvagem invasão.

Maduro mente, mas Trump mente muito mais. Na eleição de novembro ele poderá voltar à presidência dos Estados Unidos.

Maduro e Zezé Moreira

Nicolás Maduro parece ter seguido o conselho do técnico de futebol Zezé Moreira (1907-1998). Ele dirigiu o Fluminense em 467 partidas e deixou muitas lendas.

Uma questão seria decidida na cara ou coroa, e ele instruiu os jogadores:

Quando a moeda cair, vocês comecem a comemorar.

A ANS precisa falar

O deputado Duarte Jr. (PSB-MA) foi atirado numa missão impossível pelo presidente da Câmara, Arthur Lira. Cabe-lhe relatar uma solução legislativa, para o acordo-girafa sacramentado por Lira em maio, pelo qual as operadoras de planos de saúde suspenderam as rescisões unilaterais de contratos com clientes.

As empresas dizem que precisam desse gatilho para preservar sua viabilidade financeira. Duarte Jr. diz que enquanto ele estiver na cadeira essa guilhotina não retorna.

As empresas argumentam que agem de acordo com as leis e as normas da Agência Nacional de Saúde Suplementar. Estão literalmente cobertas de razão, porque essas leis, e sobretudo as normas, foram concebidas no escurinho de Brasília.

O acordo-girafa de cavalheiros de maio foi acertado sem a participação da ANS. Enquanto ela não falar nem for ouvida, as variáveis do problema ficarão envenenadas. De um lado, fica quem quer pagar pouco e receber muito. De outro, empresas que querem ganhar muito, dando pouco.

Como viceja no mercado a patranha de que existe plano de saúde barato, chegou-se a uma situação na qual as empresas resolvem o problema cancelando clientes.

Enquanto a ANS fica calada, só resta a Duarte Jr. mostrar os números e as astúcias desse setor. Têm de tudo.

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