Miguel de Almeida
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Miguel de Almeida

Editor e diretor de cinema

Informações da coluna

Miguel de Almeida

Editor e diretor de cinema

Em meados de 1985, Fernando Henrique Cardoso rodava a periferia paulistana em campanha pela Prefeitura. A ditadura fora sepultada havia pouco, eram as primeiras eleições municipais depois de 20 anos, sob os ares de um novo recomeço (não custa sonhar). O então senador amassava barro nos bairros populares, apertava a mão de líderes comunitários, enfim, seguia o figurino do beabá eleitoral. Comia uma maionese aqui, um churrasquinho ali.

Também na disputa pelo cargo, sem sair de casa, reunindo-se diariamente com seus apoiadores e abastecido por doses de vinho do Porto, Jânio Quadros, apresentado como o passado em pessoa, ironizava seu adversário, visto como a renovação em cores: “não sabe sequer onde fica Sapopemba” (equivalente a Del Castilho carioca). FH carregava a fama de só conhecer Paris e os arredores da Sorbonne.

Podia ser verdade, mas não mostrou ser o maior problema da campanha de FH. Em sua empolgação, se esmerava num discurso para o país, quando era candidato a prefeito. Martelava a ideia de que o voto nele significava a consolidação da democracia. E, no adversário, o retrocesso. De outro lado, Jânio falava em transporte público, água encanada, asfalto em regiões carentes.

Lembro-me de dizer a José Serra, então secretário no governo de Franco Montoro:

— Vocês vão perder.

— Não diga isso. Por quê?

— A população quer saber de creche e transporte. Essa conversa de democracia não bate na periferia.

Jânio levou a eleição por uma diferença muito pequena (3%). Fez uma gestão de olho na mobilidade urbana, com a construção de novas avenidas e viadutos, também com gestos acusados de populistas, mas que eram música a alguns ouvidos, como o decreto que mandava plantar apenas árvores frutíferas na cidade — “para que voltem os passarinhos”, justificou em seu despacho. Emulava assim Mário Covas, prefeito anterior, que mandara plantar flores nas ilhas centrais das principais avenidas da cidade. Além de instituir o passe livre aos idosos no transporte público. Antes participara de mutirões na construção de casas na periferia.

Desde então, por uma desgraça qualquer, cada vez mais as metrópoles brasileiras são vítimas de políticos com medo dos problemas de suas cidades. Interessados apenas em usar o cargo de olho em postos mais altos — governo estadual ou Presidência. Enquanto as ruas são cobertas de buracos, as calçadas expulsam os pedestres, as creches ficam sem funcionários, e o mercado imobiliário dita os planos urbanísticos.

A imagem do alcaide preocupado com o bem-estar de seus cidadãos, capaz de oferecer políticas públicas criativas ou de reinventar o espaço urbano — bem, essa é uma figura em desuso. Foi substituído pelo tipo ideológico, fundamentalista. O que governa sob o pensamento de estar à frente de uma pequena aldeia, não de uma metrópole povoada por milhares de pessoas com opiniões diversas, mas com necessidades básicas que precisam ser satisfeitas. Como uma calçada sem buracos. Ou uma praça ajardinada.

A ideia da urbanidade, a exaltação do universo urbano, do espaço capaz de reunir a quintessência da civilização, como acalentava o poeta Charles Baudelaire, parece sepultada. A realidade exibe prefeitos voluntariosos e despreparados, religiosamente fanáticos, atingidos pelo rodapé da ideologia.

Cidades como Rio e São Paulo tornaram-se caras, pouco aprazíveis, perigosas e sujas, com impostos altos, serviços taxados em excesso e problemas que se agravam, sob direita ou esquerda. Como a questão dos viciados em crack, cada vez mais grave e a caminho de se tornar um conflito civil. Em São Paulo, os prefeitos Fernando Haddad ou João Doria, cada qual numa cartilha, colocaram na mesa diferentes abordagens, entre o afago e a porrada, tendo como resultado o aumento no número de consumidores. O famoso “deu em nada”.

Nos últimos dias, a partir de inações municipais e estaduais, moradores de bairros ameaçados da invasão por viciados riscaram a faca no chão: aqui não entram. E se postaram nas ruas em postura de barricada. Já que as autoridades se mostram incapazes de apresentar um plano factível, a população recorre a providências desesperadas. É um passo para o confronto, com mortos e feridos.

Bolsonaristas e petistas agitam bandeiras de costumes, as questões identitárias etc., só capazes de cindir, sem enfrentar problemas terrenos. Para fugir das ruas congestionadas, os entregadores de aplicativos agora disputam com os pedestres as calçadas esburacadas. Em algum momento, a coisa estoura.

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