Pablo Ortellado
PUBLICIDADE
Pablo Ortellado

Professor de Gestão de Políticas Públicas na USP

Informações da coluna

Pablo Ortellado

Professor de Gestão de Políticas Públicas na USP

‘Anarcocapitalista’, “libertário”, “ultraliberal”, “de extrema direita”. A imprensa tateia tentando encontrar a melhor classificação para Javier Milei, o candidato a presidente da Argentina que venceu as primárias no último domingo. A hesitação não é sem motivo, já que o político argentino articulou um discurso econômico libertário com um populismo cada vez mais conservador nos costumes. Essa estratégia resgata um projeto dos libertários americanos dos anos 1990, que foi chamado de “paleolibertário”.

O principal livro para entender o fenômeno Milei é “A rebeldia tornou-se de direita?”, do historiador argentino Pablo Stefanoni (saiu em 2022 no Brasil pela Editora Unicamp). Ele destaca a grande influência sobre Milei do teórico americano Murray Rothbard, um dos pais do movimento libertário, corrente política que prega uma versão muito extrema do livre-comércio e do Estado Mínimo. Em geral, os libertários defendem ampla liberdade individual, que se expressa em posições mais progressistas em temas de costumes como drogas e casamento gay — afinal, a mesma liberdade que deveria pautar as trocas no mercado também deveria orientar as decisões individuais.

Nos anos 1990, Rothbard defendeu ampliar o apelo popular das ideias libertárias por meio de uma aproximação estratégica com o populismo de direita. O programa que defendeu para essa aliança misturava demandas libertárias clássicas — como acabar com o Estado de Bem-Estar Social e abolir o Banco Central — com conservadoras, como uma abordagem dura ao crime e a defesa da família. Teoricamente, a família e a religião passaram a ser vistas por Rothbard como autoridades não coercivas, porque escolhidas pelos indivíduos e, por isso, de natureza diferente da autoridade do Estado sobre a economia, que deveria ser combatida de todas as formas.

Esse projeto “paleolibertário” se expressou na pré-candidatura a presidente de Pat Buchanan pelo Partido Republicano em 1992. O termo “paleolibertário” reúne “libertário” e “paleoconservador”—palavra usada nos Estados Unidos para diferenciar os conservadores tradicionais dos “neoconservadores”, intervencionistas na política externa. Foi nessa pré-campanha “paleolibertária” que Buchanan defendeu a prioridade das guerras culturais como “uma guerra pela alma da América”. Ele perdeu as prévias para George Bush (pai), e o movimento se dissolveu alguns anos depois reconhecendo seu fracasso eleitoral.

Milei, que abertamente reivindica o legado de Rothbard, tem feito o mesmo movimento e, aos poucos, vem combinando uma visão econômica libertária com elementos populistas conservadores. Na chave econômica, Milei tem defendido o fim do Banco Central, a dolarização da economia argentina e a privatização dos sistemas de educação e saúde, num ambicioso plano de 35 anos, dividido em três etapas.

Essa agenda econômica libertária agressiva tem obtido algum respaldo público num país castigado por inflação anual de 115% e pobreza que atinge 40% da população. Milei vem buscando ampliar o apelo popular de sua candidatura combinando esse discurso econômico com um discurso moral muito duro contra a criminalidade e a corrupção da casta, a elite acusada de controlar o Estado. Para Milei, os programas sociais, as empresas públicas e os instrumentos de regulação são todos formas de corrupção, algumas abertas, outras sutis, por meio das quais a casta se apropria ilicitamente da riqueza gerada pelos mercados.

Milei tem também, aos poucos, incorporado o discurso das guerras culturais. Vem fazendo oposição à “ideologia de gênero”, ideia conspiratória segundo a qual os progressistas embaralham a distinção biológica entre homem e mulher no sistema escolar para confundir crianças e jovens e destruir a família tradicional. Propõe o fim do sistema público de educação e sua substituição por um sistema de vouchers, já que, sem sistema público, a esquerda perderia a capacidade de controlar o currículo.

Também tem revisto sua posição libertária histórica em favor da liberação das drogas. Seu argumento tem sido que, num sistema onde a saúde ainda é pública, o consumo de drogas não é apenas um problema do indivíduo, já que o seu eventual tratamento médico terá de ser pago por todos. Esse argumento o tem levado à condenação das drogas, com apelo junto aos conservadores.

Milei parece difícil de classificar, mas não é tão diferente de Bolsonaro. Com ênfases diferentes, os dois combinam conservadorismo moral e liberalismo econômico extremo. Enquanto o conservador Bolsonaro incorporou tardiamente as ideias de Paulo Guedes, Milei fez o caminho inverso: vindo da economia libertária, cada vez mais incorpora o conservadorismo moral.

Mais recente Próxima Como encerrar a guerra às drogas?