Roberto DaMatta
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Roberto DaMatta

Antropólogo

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Roberto DaMatta

Antropólogo

A morte de Tony Bennett me leva a escrever sobre a modalidade musical que o consagrou — os standards americanos que gerações de artistas da voz e da declamação (como Al Jolson ou Jimmy Durante) exprimiram. A música, essa linguagem sublime, opera como o incenso e o perfume — entra em nós, só Deus sabe que pedaço do nosso ser ela tocará.

A música de Tony Bennett elaborava o amor romântico, fugaz e raramente trágico. Pode-se dizer que Tony, Sinatra, Crosby, Cole e tantos outros e outras — como Billie Holiday, Doris Day ou as maravilhosas Ella Fitzgerald e Peggy Lee — cantaram e foram cantados pelo amor da perspectiva do ultraindividualismo americano, salientando como o amor trazia felicidade e compensava a aspereza de um sistema competitivo. Enquanto a música brasileira lidava mais com traições e mulheres, a americana abordava os compromissos entre corpo e alma — como em “Body and soul” —, esse enlace que pode ser perfeito como um “Tea for two”, frívolo como um “Just one of those things” ou trágico como “When Joanna loved me” ou “Stormy weather”.

Tudo isso para lembrar que, na minha juventude, a música e os filmes, mais que a sociedade, foram importantes para o aprendizado desta coisa chamada “amor”, não por acaso tema de uma belíssima balada de Cole Porter.

Pode ser exagero, mas o verbo amar era usado com mais parcimônia. Não ousávamos declarar amor. Dizia-se “eu gosto de você”. Tal diferença era clara naqueles tempos idos e perdidos, quando talvez o declarativo “I love you” fosse muito intenso e honesto para o machismo nacional.

Éramos catequizados para amar a Deus, que estava em todo lugar, mas a gente não via; amávamos silenciosamente nossos pais e, sobretudo, avós, tios e irmãos, que eram nossos cúmplices; respeitávamos e admirávamos alguns de nossos professores — e nosso melhor amigo era perfeito... No mais, a gente gostava. Gostar implica escolha e circunstância; o amor que eu ouvia (e escutava) no canto de Tony Bennett e, no cinema, vivia com Montgomery Clift era trágico, arrebatador, sublime, abstrato, exclusivo e eterno.

Talvez por causa disso, não podíamos amar o Brasil ou, quem sabe, até mesmo gostar do Brasil, porque o Brasil era (e ainda é) pensado por meio de “governos”, e ninguém elogia governos; porque, se há governo, somos contra! E somos contra porque os governos fazem o país surgir não como uma unidade integrada num território, mas com a cara de pessoas de cujo comportamento temos motivos para duvidar. Nesse caso, governo e oposição não se definem como instituições, mas como grupos de pessoas em perpétuo combate.

Foi muito jovem que intuí como os governos tinham como alvo explícito acabar uns com os outros, e não fazer o Brasil avançar. Governo é simbolizado com o nome do presidente, que (por pior que seja) sempre vira um coletivo e, eventualmente, uma bandeira intocável, justamente por ser personalizado. A dificuldade de separar governo de Estado é irmã dessa perspectiva que personaliza a vida social.

Mas será que gostamos mesmo de governos? Um amigo politicamente impecável complementa dizendo que o padrão seria amar o Estado e gostar do governo — ou de governos. Difícil, sem dúvida, porque os governos, como tudo de que gostamos, têm cara, voz, corpo, jeito, altura e largura, estatura cívica e moral. E, na medida em que personalizamos, não exigimos do Brasil, mas do governo de X ou Y. E, em todos os casos, há, como não poderia deixar de ser, falhas, erros e omissões.

Nesse caso, a totalidade é sempre consumida por suas partes. Enxergamos muito mais um corpo sem alma. E, sem ver o país como um todo solidário, a ele damos muito pouco amor e um pouco do nosso gosto.

P.S.: Em memória de João José Ribeiro Galindo. Amigo de juventude amado e gostado.

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