Política CPI da Covid

À CPI da Covid, lobista diz que usou camarote de filho de Bolsonaro e o orientou sobre abertura de empresa

Comissão decide convocar a ex-mulher de Bolsonaro, Ana Cristina Valle
Empresário Marconny Faria, apontado como lobista da Precisa Medicamentos, presta depoimento à CPI da Covid Foto: Roque de Sá / Agência Senado
Empresário Marconny Faria, apontado como lobista da Precisa Medicamentos, presta depoimento à CPI da Covid Foto: Roque de Sá / Agência Senado

BRASÍLIA — Suspeito de atuar no Ministério da Saúde em prol da Precisa Medicamentos, o lobista Marconny Faria admitiu ter feito sua festa de aniversário no camarote de Jair Renan Bolsonaro, filho do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Reconheceu também ter apresentado a ele um advogado tributarista para ajudá-lo na  abertura de sua empresa. A resposta sobre o camarote foi dada ao senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) durante a sessão da CPI da Covid desta quarta-feira. A empresa de Jair Renan, a Bolsonaro Jr Eventos e Mídia, foi aberta após a ajuda de Marconny. A empresa funciona justamente em um camarote do estádio localizado em Brasília.

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—  A ilegalidade está no que se consegue nas festas. Porque se elucida com muita clareza por que vale a pena contratar Marconny. Marconny disse que não conhece senador, não é advogado, não entende de contrato, não entende da administração pública, mas é um cara que vai para o churrasco com a advogada do presidente, e faz sua festa de aniversário no camarote de propriedade ou aluguel do filho do presidente. O senhor tem mais alguma ligação com Jair Renan? — questionou Alessandro.

— Não — respondeu Faria.

— Já o ajudou em alguma atividade?

— Não.

— Apenas liberou a festa. Conhece há quanto tempo?

— Uns dois anos.

— Isso foi suficiente para ter relação fraterna para fazer festa com ele?

— Sim.

Ao responder algumas outras perguntas, como se já havia se encontrado com determinada pessoa, Faria disse não se lembrar. Renan reagiu:

— Estamos diante do mais cínico de todos depoimentos.

O presidente da CPI, senador Omar Aziz (PSD-AM) também ironizou a fala de Faria:

— Para subir em caminhão, todo mundo é macho. Para falar mal dos políticos, para denegrir a imagem das pessoas, é macho. Mas chega aqui, aí, mano velho, a conversa é diferente.

Depoente foi questionado pelo senador Alessandro Vieira sobre festa no Mané Garrincha, organizada pelo filho do presidente, durante a pandemia
Depoente foi questionado pelo senador Alessandro Vieira sobre festa no Mané Garrincha, organizada pelo filho do presidente, durante a pandemia

Questionado pelo relator da CPI, Renan Calheiros (MDB-AL), Marconny disse manter relação de amizade com Jair Renan, mas nenhum negócio. Contou também conhecer a mãe dele, Ana Cristina Valle, ex-mulher do presidente, mas disse desconhecer outros integrantes da família. Marconny afirmou também que apresentou Jair Renan a outro profissional que poderia ajudá-lo a montar uma empresa. Renan criticou o depoimento de Marconny, argumentando que ele mentiu e deu respostas evasivas, e passou a incluí-lo na lista de investigados da CPI.

O vice-presidente da CPI, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), apresentou uma troca de mensagens de Marconny com um passo a passo para a Precisa obter sucesso dentro do Ministério da Saúde, o que envolveria a desclassificação dos concorrentes com a ajuda de Roberto Ferreira Dias, ex-diretor de Logística da pasta. Marconny afirmou que o passo a passo foi elaborado pela própria Precisa. Por outro lado, negou que tenha atuado para prejudicar os concorrentes da Precisa.

— Isso foi enviado pela parte técnica da Precisa — disse Marconny.

Ele também disse não conhecer ninguém no Ministério da Saúde.

'Péssimo lobista'

No início da sessão, durante a fala inicial, Faria negou ser lobista e ainda afirmou que, caso fosse, seria "um péssimo lobista". Na comissão, Marconny ganhou o apelido de “senhor de todos os lobbies”, cunhado pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP).

O lobista disse que as mensagens de seu celular não têm relação com a pandemia e que foi ele quem denunciou um esquema de corrupção no Instituto Evandro Chagas, órgão federal ligado ao Ministério da Saúde e sediado no Pará. Disse ainda não ter envolvimento na compra de vacinas, tendo atuado para a Precisa em outro processo de compra pública, para aquisição de testes.

— Tive um aparelho celular apreendido após ter sido responsável por denunciar corrupção do Instituto Evandro Chagas. Não era alvo de corrupção. Nunca fui alvo de corrupção. E me tornei investigado — afirmou Faria, recusando-se depois a dar mais detalhes porque o processo corre em segredo de justiça.

Ele também disse que nunca transformou suas relações sociais em ganhos econômicos.

— Os contatos que criei ao longo da minha carreira vieram em decorrência de minha formação, além de ter crescido nesta maravilhosa capital federal. Ao longo da minha carreira, conheci pessoas do mundo social de Brasília, de várias tendências políticas. O extrato das minhas conversas demonstra que tenho ótimos amigos. Ao contrário do que dizem por aí, se eu um fosse um lobista, eu seria um péssimo lobista, porque jamais fui capaz de transformar minhas relações sociais em contratos e resultados econômicos milionários, conforme falsamente divulgado pela imprensa.

Omar Aziz questionou por que ele buscou um atestado médico, mesmo sendo um profissional liberal que não precisa justificar falta no trabalho. Marconny disse que, em razão da situação que o colocou no centro das atenções da CPI, passou mal e foi a um médico que, observando o seu estado, deu um atestado.

Presidente da CPI da Covid contesta argumento de suposto lobista da Precisa Medicamentos no início da oitiva desta quarta-feira
Presidente da CPI da Covid contesta argumento de suposto lobista da Precisa Medicamentos no início da oitiva desta quarta-feira

Faria também anunciou que usaria o direito garantido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) de não responder a perguntas que possam incriminá-lo.

Randolfe Rodrigues disse que Marconny procurou um policial federal para verificar se o celular de um contato dele estava grampeado.

— O senhor não é um lobista qualquer não, para ter Interferência junto agente na Polícia Federal — disse Randolfe, que ainda ironizou:

— Ele tem contato com a ex-mulher do presidente da República, tem contato com o filho do presidente da República, tem contato com outro filho do presidente da República, interfere na nomeação do Instituto Evandro Chagas, o cara do Instituto Evandro Chagas é preso depois. Interfere na compra de máscaras, de kit covid, de teste de covid, interfere até na indicação da Defensoria Pública da União, tem relação com Karina Kufa, advogada relacionada à família Bolsonaro. Não seja modesto, senhor Marconny! Tem contatos na Polícia Federal para blindar outros lobistas.

Sobre Karina Kufa, Marconny disse primeiramente não ter feito negócios com ela. Randolfe leu então uma mensagem de 30 de agosto de 2020 em que uma pessoa do escritório da advogada do presidente Bolsonaro combina uma videoconferência para eles tratarem de negócios.

Marconny usou então o direito de ficar em silêncio. Randolfe insistiu no assunto, e ele mudou a versão.

— Eu me retrato, mas foi uma sondagem apenas. Não prosperou — disse Marconny.

Randolfe disse que teve vontade de pedir a prisão do depoente, mas não havia clareza sobre os limites da decisão da ministra Cármen Lúcia, do STF, que aceitou um habeas corpus da defesa. Para Randolfe, houve falso testemunho.

Senador envolvido

Em uma mensagem de seu celular, Marconny disse que um senador poderia "desatar o nó" do processo da compra de testes da Precisa. Integrantes da CPI perguntaram quem é esse senador, mas ele disse não saber. Questionado quantos senadores conhece, disse que nenhum. Em seguida, o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) o criticou duramente, lembrando que no passado Marconny já subiu em carro de som para gritar contra a corrupção. A senadora Leila Barros (Cidadania-SE) sugeriu levantar os registros de Marconny no Senado para saber que gabinetes já visitou. Depois disso, Marconny afirmou já ter ido ao Senado antes, mas não foi ver nenhum senador.

Ele também disse que a assessoria à Precisa era técnica e política. O senador Otto Alencar perguntou então que político ele procurou no Ministério da Saúde, e Faria respondeu que nenhum. Ele não quis responder quantas vezes já foi ao escritório da Precisa em Brasília.

O suposto lobista afirmou ainda que presta assessoria apenas para o setor privado, o que inclui também parlamentares, mas não quis dizer os nomes dos clientes em razão de cláusula de sigilo. Alguns senadores acharam estranho ele considerar parlamentares como setor privado.

Faltas e atestados

Inicialmente, a oitiva de Marconny estava marcada para 2 de setembro, mas ele faltou a sessão e apresentou um atestado médico, que foi contestado pela cúpula da comissão. No início da semana, a Justiça Federal de Brasília autorizou, se necessário, a condução coercitiva de Marconny. Isso significa ele poderia ser levado à força caso se não tivesse comparecido espontaneamente.

Conforme revelou o GLOBO, mensagens compartilhadas pelo Ministério Público Federal (MPF) no Pará mostram que o lobista tinha uma vasta teia de contatos em Brasília, incluindo a ex-mulher do presidente Jair Bolsonaro, Ana Cristina Siqueira Valle, e um de seus filhos, Jair Renan Bolsonaro, conhecido como "04". A empresa de Jair Renan, a Bolsonaro Jr Eventos e Mídia, foi aberta com a ajuda de Marconny. Inicialmente Marconny disse ter uma relação de amizade com Jair Renan. Depois, ao ser questionado se era amigo dele, Marconny respondeu que é um colega.

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Os diálogos também revelaram que, a pedido do lobista, Ana Cristina acionou o Palácio do Planalto para influenciar na escolha do defensor público da União, em 2020, junto ao então ministro da Secretaria-Geral, Jorge Oliveira, atual membro do Tribunal de Contas da União (TCU). As mensagens também indicam que, em outra ocasião, Ana Cristina atuou para emplacar uma indicação do advogado em um instituto ligado ao Ministério da Saúde.

Além de familiares do presidente da República, o lobista também mantinha contato com Karina Kufa, advogada do presidente Jair Bolsonaro, e também recorreu a ela para o processo de escolha da Defensoria Pública. Conversas no celular de Marconny mostram que Karina Kufa acionou o Gabinete de Segurança de Institucional (GSI) para influenciar no processo e evitar que um dos candidatos fosse nomeado pelo presidente.

Bacharel em Direito, Marconny apresenta-se como advogado, mas o Cadastro Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) tem apenas um registro de seu nome, já cancelado, como estagiário.