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Política

Autoridades tiveram dados acessados de forma indevida, diz vice-presidente do TCU

Em entrevista, ministro Bruno Dantas também alerta que, em ano eleitoral, há um ‘ímpeto’ de furar o controle de gastos e condena ‘puxadinhos’ nas contas públicas
Bruno Dantas, ministro-corregedor do Tribunal de Contas da União (TCU). Foto: Cristiano Mariz / Agência O Globo
Bruno Dantas, ministro-corregedor do Tribunal de Contas da União (TCU). Foto: Cristiano Mariz / Agência O Globo

BRASÍLIA — O vice-presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), ministro Bruno Dantas, é responsável por conduzir fiscalizações da atuação da Receita Federal e do Coaf, órgão de combate à lavagem de dinheiro. Numa delas foram encontrados indícios de que dados financeiros de autoridades, classificadas como “pessoas expostas politicamente e” (PEPs), foram acessados indevidamente. Na resolução que regulamenta as atividades do Coaf, é descrito que as PEPs — autoridades que vão desde ministros de estado a integrantes de tribunais — devem receber “especial atenção” dos servidores do Coaf. Ao GLOBO, Dantas conta que alguns membros do Coaf e da Receita foram além e abriram dados de forma indevida. Ele diz ter percebido que os “controles tanto da Receita quanto do Coaf eram frágeis, o que criava espaço para fiscalizações seletivas”. O caso, sob sigilo, retrata a ação de uma minoria de servidores que tem sido coibida, segundo o ministro. Nesta entrevista, Dantas ainda avalia que a crise gerada por Jair Bolsonaro com os ataques ao STF é um “teatro”, uma necessidade do presidente de “manter uma base ideológica permanentemente mobilizada”.

O senhor acredita que a crise institucional, estimulada pelas falas do presidente Bolsonaro contra o STF, foi resolvida após a divulgação da “declaração à nação”?

Essa crise institucional é artificial, porque há gritos numa direção, mas não há ações. É muito mais um teatro, mas que desgasta, esgarça as relações e tira a tranquilidade. Estamos vivendo praticamente desde 2014, 2015 no limite das instituições. O TCU, depois de 70 anos, rejeitou as contas de um presidente, Dilma Rousseff. Três anos depois, o procurador-geral da República (Rodrigo Janot) denunciou o presidente Michel Temer. A novidade que temos agora é um pouco dessa falta de liturgia que é o estilo do presidente Bolsonaro. A percepção é que o presidente tem um estilo de atuação que muitas vezes leva em consideração as necessidades do governo, mas, ao mesmo tempo, precisa manter a base ideológica mobilizada.


Mas esse jogo de cena seria uma tentativa de testar os limites das instituições?

Pode ser. Mas a verdade é que isso ocorre desde 2019. O que vimos neste 7 de setembro também vimos no ano passado quando o presidente subiu em um caminhão ali em frente ao quartel general do Exército com um discurso parecido. São ações parecidas, mas que não se desdobram no mundo real em um esforço, digamos, mais articulado para desestabilizar as instituições. Esse discurso, claro, deixa todo mundo em estado de alerta. Mas, felizmente, há uma rede de instituições empenhada em manter os pilares do nosso sistema democrático. E isso inclui o Judiciário, o Tribunal de Contas,  o Congresso,  o Ministério Público...O Supremo não está sozinho nisso.

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Em meio à crise com o STF, o governo tenta negociar uma solução para o pagamento dos precatórios. Qual a saída?

Uma das tentativas de solução veio pelo próprio Ministério da Economia mandando uma PEC ao Congresso sugerindo o parcelamento dos precatórios. A outra foi considerar a despesa de precatórios de Fundef (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério) fora do teto, porque o Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica) está fora. Isso é um puxadinho. É contornar o teto de gasto. Estamos a um ano das eleições e conhecemos os ímpetos que afloram entre pessoas que vão disputar eleições. É claro que há uma tentação para se pensar menos nas finanças públicas e mais em dividendos eleitorais. O que eu disse ao ministro Paulo Guedes é que a nossa principal âncora não pode ser sequer arranhada agora. Sugeri criar um teto específico para os precatórios.

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As emendas de relator, chamada de Orçamento Paralelo, foram mantidas para o Orçamento de 2022. Como assegurar a transparência?

No Tribunal nós não fazemos lei, nós aplicamos a lei. E essa e essa é uma lei que existe e é válida. Mas temos a obrigação de aplicá-la a partir das lentes da Constituição, que fala de princípio da publicidade.  O Tribunal recomendou à Casa Civil que elaborasse  um ato normativo que garantisse a transparência dessas emendas de relator. Se houver algum problema de inconstitucionalidade, cabe ao Supremo decidir, não ao TCU fazê-lo.


Como o senhor avalia a gestão do governo no combate à pandemia que ceifou a vida de quase 590 mil pessoas?

O TCU acompanhou a gestão da pandemia. Nos processos do Ministério da Saúde,  identificamos alguns problemas estruturais. Os nossos auditores identificaram que houve uma falha da Casa Civil, que, em vez de exercer o seu papel de centro de governo, transferia responsabilidades para o Ministério de Saúde. Já ao Ministério Saúde deveria coordenar as ações das secretarias estaduais, mas se eximiu desse papel, deixando cada estado agir de maneira individual. De certa forma, isso representa uma autodefesa para ao final da pandemia não ser responsabilizado por falhas.


Por que o TCU só analisou o caso do contrato com a vacina Covaxin após o escândalo vir à tona na CPI da Covid?
Não sou o relator do caso, mas  auditores entenderam que precisavam de mais informações e não havia naquele momento o risco de se concretizar porque era um contrato inicial. O escândalo emergiu e o contrato foi cancelado. O TCU nunca disse que estava tudo bem. Dissemos que não era possível emitir um juízo de valor naquele momento. Como é que você manda suspender a compra de uma vacina sem ter elementos para cravar que aquela compra é ilegal em um momento em que a população está precisando de vacinas?


O senhor é responsável por uma fiscalização sobre a atuação do Coaf e da Receita Federal. Ao longo das apurações, encontrou indícios de que autoridades tiveram os seus sigilos acessados indevidamente?

Sim. Percebemos que os controles tanto da Receita quanto do Coaf eram absolutamente frágeis, o que criava espaço para fiscalizações seletivas. Um dos casos ainda está em curso. O que posso dizer é que um dos documentos que recebemos dava conta de que alguns auditores da Receita haviam respondido a um processo disciplinar e tinham sofrido sanções exatamente por terem promovido atos que fugiam do princípio da impessoalidade. Se não existirem controles transparentes e que permitam aos órgãos competentes verificarem se houve abusos, cria-se um ambiente favorável à atuação de pessoas mal intencionadas. A Receita e o Coaf são instituições de Estado cuja a maioria dos seus servidores é técnica e comprometida. Mas é preciso que haja instrumentos para coibir a atuação da minoria que aceita cometer ilegalidades.


Quais autoridades, por exemplo, foram alvos?

Você tem um conceito internacional que são as pessoas politicamente expostas (PEP). E houve desde ministro de Estado, parlamentar, até ministros do Supremo, ministros de outros Tribunais Superiores, procuradores e promotores.. Então, há uma preocupação muito grande que esses órgãos de estados possam ser utilizados para perseguições e para finalidades não republicanas. Isso foi descoberto e estamos cobrando da Receita providências para que crie controles e para que esse tipo de ilegalidade não volte a acontecer.

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O TCU puniu com uma suspensão de 45 dias o servidor responsável por produzir um “relatório paralelo” sobre mortes por Covid-19 usado por Bolsonaro. A pena foi justa?

Ele recebeu a segunda pena mais grave para um servidor. Fizemos uma devassa nas comunicações dele, no e-mail e no telefone funcional, e não encontramos outro episódio em que ele tenha colocado o cargo de auditor de Controle Externo do TCU à disposição de disputas políticas. Então, o que concluímos foi que se tratou de episódio isolado gravíssimo, mas não havia razão para fazer o enquadramento jurídico na pena de demissão.