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Com aumento de participação no governo, militares abraçam pauta bolsonarista

Nomeações e acenos à linha defendida por Bolsonaro na crise do Covid-19 expõem papel ambíguo das Forças Armadas, dizem especialistas
Laboratório Químico Farmacêutico do Exército (LQFEx) intensificou a produção do medicamento cloroquina, defendido por Bolsonaro Foto: Divulgação

BRASÍLIA - O crescimento da nomeação de militares para postos estratégicos do governo federal, inclusive com cargos no Ministério da Saúde , abriu espaço para adoção de protocolos contra a Covid-19 mais alinhados ao presidente Jair Bolsonaro e expôs uma ambiguidade do papel das Forças Armadas, afirmam estudiosos. Ao mesmo tempo em que comandantes e o ministro da Defesa pontuam o papel institucional e de serviço ao Estado, e não ao governo Bolsonaro, os espaços na atual gestão são ocupados em velocidade cada vez maior por militares.

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Visto em uma primeira fase do governo como capazes de limitar arroubos radicais de Bolsonaro, o núcleo militar agora também exerce papéis mais associados à chamada ala ideológica, como a defesa da cloroquina no tratamento contra a Covid-19 — não há evidência científica da eficácia do remédio. Segundo o “Painel estatístico de pessoal”, do Ministério da Economia, há 2.067 servidores de Exército, Marinha e Aeronáutica requisitados por outros setores do governo federal.

O número é 7% superior ao do ano passado e 12% maior que o de 2018, último ano de Michel Temer. Na comparação com os períodos finais das gestões petistas, o crescimento é de 16% em relação a março de 2016 (dois meses antes da abertura do processo de impeachment de Dilma Rousseff) e de 48% sobre 2010, último ano de Luiz Inácio Lula da Silva.

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Hoje há nove ministros com origem militar, além de funções ocupadas em escalões inferiores. Em relação ao desenho inicial, quando o comando de áreas como Infraestrutura, Ciência e Tecnologia e Minas e Energia já havia sido delegada a militares, a expansão ocorreu para três setores essenciais ao governo. Ainda em 2019, a articulação política deixou de ser responsabilidade de um civil (Onyx Lorenzoni, então ministro da Casa Civil) e passou a ser função do general Luiz Eduardo Ramos, que assumiu a Secretaria de Governo e incorporou a atribuição.

Alvo de duas investigações no Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Salles, alvo de investigações da Polícia Federal no dia 23 de junho, pediu demissão do cargo, apesar do respaldo do Palácio do Planalto. Ele alegou problemas familiares Foto: SERGIO LIMA / AFP
Ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, entregou o cargo, através de nota, sem explicar o motivo da demissão Foto: RONALD GRANT
O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, pediu demissão do cargo no dia 29 de março, após virar alvo do Centrão por causa da má gestão do governo no combate à pandemia. Foto: ADRIANO MACHADO / REUTERS
Depois de quase um ano à frente do Ministério da Saúde, Eduardo Pazuello entregou o cargo sendo questionado sobre desempenho no combate da Covid-19 Foto: Pablo Jacob/Agência O Globo/15-03-2021
Após 14 meses Abraham Weintraub deixou o Ministério da Educação sendo investigado por ter dito que, por ele, "botava esses vagabundos todos na cadeia, começando no STF". A declaração foi feita durante reunião ministerial no dia 22 de abril de 2020, cujo vídeo foi divulgado pela Justiça Foto: Jorge William / Agência O Globo - 10/10/2019
Ministro da Saúde, Nelson Teich, pediu exoneração dia 15 de maio de 2020, depois do presidente mudar protocolo de atendimento de pacientes da Covid-19: Bolsonaro defende que todos pacientes sejam tratados com a cloroquina desde o começo Foto: Pablo Jacob / Agência O Globo - 11/05/2020
Em uma de suas últimas entrevistas, Mandetta reconheceu que havia um "descompasso" entre o trabalho na pasta e a linha de ação defendida por Bolsonaro Foto: Ueslei Marcelino / REUTERS 15/04/2020
Moro deixou o Ministério da Justiça acusando Bolsonaro de interferência política na Polícia Federal Foto: Adriano Machado / Reuters - 18/12/2019
Terceiro a comandar a pasta da Educação, o professor Carlos Decotelli ficou menos de uma semana no cargo e pediu demissão no dia 30 de junho. A saída se deu após repercussão de informações falsas incluídas em seu currículo e a acusação de plágio em sua dissertação de mestrado Foto: MARCOS CORREA / AFP - 25/06/2020
Regina Duarte, secretária especial de Cultura, demitida do cargo depois de polêmicas por não homenagear artistas mortos e por defender a ditadura militar numa entrevista para a televisão. O presidente Jair Bolsonaro anunciou numa rede social, ela assumiria a Cinemateca Brasileira, em São Paulo Foto: ADRIANO MACHADO / Reuters
Ministro do Desenvolvimento Regional, Gustavo Canuto, foi exonerado em fevereiro e realocado para a presidência do Dataprev Foto: Jorge William / Agência O Globo
Osmar Terra foi exonerado do Ministério da Cidadania e substituído por Onyx Lorenzoni, que por sua vez saiu da Casa Civil Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo
Floriano Peixoto deixou o cargo de ministro da Secretaria Geral da Presidência para ser nomeado para a presidência dos Correios. Jorge Antônio de Oliveira Francisco, major da reserva da PM do Distrito Federal, assumiu a pasta Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
Bolsonaro demitiu o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, em junho de 2019, da Secretaria de Governo da Presidência da República. Ele vinha sofrendo um processo de "fritura" há pelo menos dois meses e foi alvo constante de Carlos Bolsonaro (PSC-RJ) e da ala ideológica do governo. Foto: EVARISTO SA / AFP
Ricardo Vélez Rodríguez foi exonerado do cargo de Ministro da Educação em abril de 2019, depois de polêmicas com seus assessores. Ele terminou substituído por Abraham Weintraub Foto: Luis Fortes / MEC / Agência O Globo - 02/01/2019
Gustavo Bebianno foi presidente do PSL, partido que levou Bolsonaro à presidência, e ocupou por por pouco mais de um mês a Secretaria-Geral da Presidência da República. A demissão aconteceu depois de conflito com o fiho do presidente, Carlos Bolsonaro. Bebianno morreu devido a um ataque cardíaco em 14 de março deste ano, sem ter se reconciliado com o presidente que ajudou a eleger Foto: Alexandre Cassiano / Agência O Globo - 03/07/2019

Em 2020, a expansão chegou à coordenação da atuação dos ministérios, com a escolha do general Braga Netto para a Casa Civil, e à liderança no combate ao coronavírus, consolidada com a nomeação do general Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde.

Efeito Trump

O embarque a ala militar na linha de frente do combate à pandemia abriu caminho para permitir o uso de cloroquina em casos leves da doença, prática que encontrou resistência nos ex-ministros Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, ambos médicos. Um dos militares nomeados para a pasta elogiou o fato de o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, tomar o medicamento . Já o Laboratório do Exército entrou na linha de produção e entregou 1,25 milhão de comprimidos, sob aprovação do presidente.

O cientista político Octavio Amorim Neto, professor da Ebape/FGV, avalia que, em um primeiro momento, preencher ministérios com militares foi uma saída achada por Bolsonaro em um cenário de poucos quadros no PSL, partido pelo qual foi eleito, e sem disposição de repartir espaço com outras legendas. Além disso, poderia se beneficiar do prestígio das Forças Armadas junto à população — em julho de 2019, o Datafolha mostrou que 42% dos brasileiros “confiavam muito” nas instituições militares — e fortalecer o discurso contra a política tradicional.

Na outra ponta, as Forças Armadas, movidas também por afinidade ideológica e a sensação de ter uma “missão” a cumprir, viram uma reforma da Previdência mais branda ser aprovada para a categoria e o orçamento do Ministério da Defesa para 2020 ser protegido de possíveis contingenciamentos. O professor, que classifica a situação das Forças Armadas como de “extrema ambiguidade”, avalia que um eventual agravamento da crise política pode tornar a situação ainda mais complexa:

— Com o esforço permanente de envolver as Forças Armadas no governo, uma crise que leve a um indício de processo de destituição legal pode ocasionar manifestações políticas de setores subalternos das Forças, ao arrepio do que diz o Alto Comando. É a pior coisa para uma instituição que preza pela disciplina.

Desgaste da imagem

O cientista político Rafael Cortez, sócio da consultoria Tendências, observa que o incremento da presença de militares acontece em um momento de desgaste político intenso, com a saída de ministros populares — casos de Sergio Moro (Justiça) e Mandetta —, além de investigações sobre a suposta interferência de Bolsonaro na Polícia Federal. Para Cortez, a identidade entre pontos de vista das Forças Armadas e parte do discurso bolsonarista também alavanca a participação militar no governo.

— O ponto principal da estratégia é elevar o custo de um movimento que leve a um processo de interrupção de mandato por meio do impeachment — diz Cortez, que vê uma “tensão” entre o mundo militar e o político.

Para o cientista político Christian Lynch, professor do Iesp/Uerj, a associação pode gerar prejuízos para as Forças Armadas a médio prazo:

— Conforme a imagem do governo vai queimando, vai levando junto a do Exército, que está colado com o bolsonarismo. Pode ser um caminho sem volta — analisa.

Já o cientista político Fernando Schuler, professor do Insper, avalia que as nomeações de estão mais relacionadas à “zona de conforto” do presidente:

— Há uma cultura de hierarquia e disciplina. No caso de profissionais da área científica, por exemplo, com mais autonomia, existe risco maior de contestação.