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Marcelo Rubens Paiva entrevista Mario Sergio Cortella: 'São Paulo tem que recuperar a vida comunitária'

Filósofo afirma que é preciso descentralizar a gestão da cidade para torná-la administrável
O escritor Marcelo Rubens Paiva entrevista o filósofo Mario Sergio Cortella Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
O escritor Marcelo Rubens Paiva entrevista o filósofo Mario Sergio Cortella Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

SÃO PAULO —  Em uma conversa com o jornalista e escritor Marcelo Rubens Paiva, o filósofo, escritor e fenômeno das redes sociais Mario Sergio Cortella, de 66 anos afirma que São Paulo precisa oferecer aos paulistanos a chance de recuperar o senso de vida em comunidade — e não apenas o de  estarem agrupados no mesmo território —, e defende que os candidatos devem pensar em como será a cidade após a pandemia.

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‘A gente não se sente proprietário da cidade, mas usuário. É preciso descentralizar a gestão de São Paulo para torná-la administrável", defende.

Essa entrevista é a primeira de uma série sobre diagnósticos e soluções para a cidade de São Paulo.

Leia a entrevista:

Você nasceu em Londrina, no Paraná, e está em São Paulo há 53 anos. O que faria se fosse prefeito?

Eu alteraria um pouco o modo como a gente organiza a tomada de decisão na cidade. Esta cidade é “inadministrável”. Quando eu saí de Londrina, em dezembro de 1967, São Paulo tinha por volta de 3,5 milhões de habitantes. Era uma cidade já exuberante, deglutidora, estupefaciente. E ela já era difícil de ser administrada. A percepção de subprefeituras — ou, quando fiz parte do governo (foi secretário municipal de Educação entre 91 e 92), de administrações regionais — é ainda muito limitada. É necessária uma organização de fato, em que a gente possa não fragmentar a cidade, mas reparti-la em áreas que permitam uma organização mais decisiva.

Você foi gestor na primeira administração de esquerda da cidade, que foi o governo Erundina, e seu mentor no governo era também seu mentor no doutorado e hoje uma figura que causa ojeriza da direita, que é o educador Paulo Freire.

Paulo Freire (que foi secretário municipal de Educação no início da gestão Erundina), se vivo estivesse, ele não seria contrário que alguém contra ele fosse. Eu sempre lembro: Paulo Freire era um democrata.

Você acha que SP ainda tem o ar de Paulo Freire nas escolas, na Secretaria de Educação?

Bastante, bastante. A rede privada de SP, em larga escala, tem Freire como referência. E as redes públicas, em larga escala a municipal, ficaram com uma parcela daquilo que foi o ideário de formação permanente que Freire estruturou. Muita coisa de Paulo Freire ficou. Mas não por conta apenas de que ele foi secretário, mas porque há uma presença do pensamento freiriano no Brasil e no mundo — não com a intensidade que seus adversários pretendem e nem com a densidade que seus partidários gostariam.

Em suas palestras, que têm no Youtube milhões de inscritos, você anda e conversa com muita naturalidade e é praticamente um stand up filósofo. Em uma delas, você disse algo engraçado: que, quando você veio morar em SP, quando se andava na rua, tinha-se medo de defunto, de cemitério. E, hoje em dia, temos medo da outra pessoa que está vindo ao nosso lado, dos "de passos". Como podemos resolver esse problema de São Paulo, como toda cidade do Brasil, ter se tornado uma cidade em que a gente teme o outro?

Eu faço uma distinção entre comunidade de vida e agrupamento de vida. Uma comunidade é um grupo que está junto, partilha interesses e tem mecanismos de proteção recíproca. E muitas vezes você tem gente que está junto e é só um agrupamento: há interesses que coincidem, mas não têm mecanismos de proteção recíproca. Quando mudei para São Paulo, em 1 967, ainda havia uma vida mais comunitária, de bairro, em que as pessoas se conheciam mais.

Mario Sergio Cortella diz que São Paulo precisa oferecer aos paulistanos a chance de recuperar o senso de vida comunitária Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
Mario Sergio Cortella diz que São Paulo precisa oferecer aos paulistanos a chance de recuperar o senso de vida comunitária Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

E usava-se muito as praças, eram pontos de encontro.

Exatamente. Havia uma vida que era um pouco mais comunitária. À medida em que vamos distanciando a convivência, evidentemente se perde o espírito comunitário. Uma das maneiras de fazer isso é aumentar o número de situações em que se possa ter a convivência de modo protegido. Quando se criou, por exemplo, a ideia da Paulista aberta aos domingos, ou o uso do Largo da Batata, o acesso possível ao Vale do Anhangabaú... Todos locais em que se tenha uma estrutura, uma área de tranquilidade em que se possa conviver, isso vai aumentando essa capacidade comunitária de maneira mais expressiva. Aquela clássica ideia grega da Ágora, a praça em que as pessoas se encontravam.

Como você acha que o paulistano, ou os administradores, tratam sua cidade? Me parece que antigamente tudo o que era praça era um transtorno, e tudo que era árvore era para ser cimentado porque atrapalhava.

Há uma lógica da política urbanista de fazê-la uma cidade progressista. E a noção de progresso foi exatamente a eliminação do que pudesse lembrar a natureza ou campo. Daí por isso essa lógica do asfaltamento, da cobertura. Quando você levanta essa questão de o que temos de capacidade de descuido, é porque em grande medida a gente não se sente proprietário da cidade, mas usuário. Quando temos experiências para essa cidade de gente que se apropria — não como dono, mas como cuidador — daquilo que é a praça, a rua, em vários bairros existe isso. Quando a gente vê a Paulista, e aquele símbolo da cidade colocado daquele modo, com gente cantando, namorando, aquilo dá uma percepção de apropriação muito mais forte. Nessa hora, se cuida.

Numa de suas palestras mais populares, “O tempo e a vida”, você cita o fato assustador de que quando o sujeito morre, deixa 45 toneladas de dejetos. O lixão então é um grande problema em SP.

Dar destino a isso é uma questão muito séria. E essa é uma ação política. Por exemplo, se eu hoje decido fritar algo, o destino que dou ao óleo da fritura é uma escolha política. Minha escolha não é inocente, ela tem um efeito na comunidade. Despejar na pia ou levar para um descarte mais adequado? Aí, qual será o argumento: “ah, mas eu não tenho onde colocar”; então tem que se mobilizar no seu prédio e bairro para poder fazer. “Ah, mas depois a prefeitura não dá conta”; então tem que ir em direção a quem nos representa para que haja um projeto no Legislativo que coloque o Executivo a fazê-lo. Eu uso muito uma frase de autor desconhecido: os ausentes nunca têm razão. Nesse sentido, é claro que a gente descuida. Por outro lado, a destinação de nossos resíduos desse modo torto, acaba tendo efeito rebote, porque essa mesma forma de poluição retorna paro nosso colo nas enchentes, no aroma, nos pernilongos, baratas e ratos. E agora vem a pior parte: a gente se habitua. Quando mudei para SP em 1967, o Tiete era navegável, a gente nadava nele. A gente se acostuma com o podre. Por exemplo, embora a cidade exale fedor, quando você está nas marginais dos nossos dois grandes rios, quando a gente vem chegando pela Via Dutra, Ayrton Senna ou Fernão Dias, e vem aquele fedor, a sensação é de “ai que bom, já estou em casa”. Dá um certo conforto. A gente se habitua com o podre e esse é um perigo forte.

Você propõe três caminhos para o sucesso: ensinar o que sabe, praticar o que se ensina, perguntar o que se ignora. Existe algum político no Brasil que pratique estes mandamentos?

No campo municipal, estadual e federal conheci pessoas que têm essa coerência, generosidade e humildade. Ainda não são maioria, mas existem. Já votei em várias dessas pessoas. E algumas em que votei, deixei de votar quando pararam de ter coerência ética, humildade intelectual e generosidade mental.

Caso a gente saia dessa, a humanidade vai ficar igual, melhor ou pior?

Não seremos iguais, mas também não seremos inéditos. A capacidade humana de mudar é possível. Mas não numa escala tão extensa que nos permita ser muito melhores do que estávamos. Na cidade de São Paulo, haverá um efeito benéfico para algumas pessoas, as que lidam com serviços, que são mais escolarizadas, que podem trabalhar de casa e não vão mais precisar se deslocar. Mas a parte mais pobre, que vive de serviços de limpeza, por exemplo, pode perder trabalho nos grandes escritórios. Então quem for eleito precisa pensar também no pós-2020, não apenas no que está acontecendo agora.