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Política

Itamaraty tira do ar apostila para estrangeiros com frase preconceituosa e citações ao aborto e ao MST

Guia para ensinar português associava beleza a cabelo liso; ministério diz que conteúdo estava disponível desde 2013
Itamaraty tira do ar apostila com frases preconceituosa Foto: Reprodução
Itamaraty tira do ar apostila com frases preconceituosa Foto: Reprodução

BRASÍLIA —  Um material didático disponibilizado pelo Itamaraty para estrangeiros que querem aprender o português brasileiro traz diversas frases com juízo de valor de caráter político, racial e social. Em uma delas, para ensinar a conjugação do verbo “ficar”, o texto pede que o leitor complete a sentença: “Se ela alisasse o cabelo, ela () mais bonita”. Em outras, há menções à política do país, entre elas um enunciado que aponta o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) como corrupto. As apostilas, elaboradas por uma professora que tem uma escola de idiomas em São Paulo, também contêm citações ao escândalo do mensalão, ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e ao aborto.

Procurado, o Itamaraty reconheceu que o material “não se coaduna com as diretrizes estabelecidas pelos guias curriculares” e, por isso, foi “prontamente retirado da página eletrônica da Rede Brasil Cultural”. A decisão, porém, só ocorreu depois de a reportagem procurar o Ministério das Relações Exteriores. O material estava no ar desde 2013, segundo a própria nota. O órgão acrescentou que a apostila foi incluída no sistema por “terceiros”.

Trecho de apostila do Itamaraty que foi retirada do ar Foto: Reproduçao
Trecho de apostila do Itamaraty que foi retirada do ar Foto: Reproduçao

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A série de livros “Só Verbos” estava disponível na página da Rede Brasil Cultural, da Divisão de Promoção da Língua Portuguesa do Ministério das Relações Exteriores. A rede promove o idioma e a cultura brasileira no exterior e está presente em 44 países, em cinco continentes. A autora, Airamaia Chapina, disse ao GLOBO que não foi contratada para fazer as apostilas nem contatada para a sua divulgação. Segundo ela, o material data da década passada.

“Para treinar verbos”

No último volume, a apostila orienta os alunos a fazer sentenças de acordo com o modelo apresentado, que cita o ex-presidente: “Se eu soubesse que o Lula seria tão corrupto e se envolveria com o mensalão, eu não teria votado nele”.

Em outra parte, para ensinar a conjugação de verbos no futuro, um dos exemplos requer que o aprendiz complete com “apropriasse” e “conseguisse” a oração “Se o MST se () de nossas terras, nunca mais () reavê-las”.

Trecho de apostila do Itamaraty que foi retirada do ar Foto: Reprodução
Trecho de apostila do Itamaraty que foi retirada do ar Foto: Reprodução

O material traz também enunciados preconceituosos. No segundo volume, os estudantes são orientados a completar frases com a conjugação adequada de verbos, entre eles “ficar”. “Se ela alisasse o cabelo, ela () mais bonita”. Outro exemplo que chamou atenção é “Se as mulheres não abortassem, não (haveria) tantas clínicas de aborto clandestinas”.

Airamaia Chapina, cujo nome consta das páginas do livro, explicou que sempre sentiu falta de um material para praticar a conjugação de verbos com seus alunos. Então, resolveu fazer a lista. Sobre a frase que relacionou cabelo a beleza, ela disse que “deve ter dado” esse exemplo porque o seu é ondulado. “Faço progressiva porque me acho mais bonita de cabelo liso. Minha cunhada tem cabelo cacheado e sempre digo para ela deixar natural”, comentou.

Questionada sobre a menção a Lula e ao mensalão, ela negou cunho político. “Eu nem votei naquela eleição, então, foi um exemplo qualquer. Provavelmente deveria ser algo que estava em voga”, disse a professora, por mensagem de texto.

Airamaia afirmou ainda que não sabe se os responsáveis pela Rede Brasil Cultura do Itamaraty leram o material. Ela acha que os conteúdos foram coletados de várias fontes, “só para ajudar a disponibilizar material gratuito mesmo”. “O livro é somente para treinar verbos. Não ensinamos ideologia, nem história, nem nada. Tenho alunos que querem aprender português para turismo, outros para trabalhar. Sou bem neutra”, declarou.

Ontem à noite, depois de tirar a apostila do ar, o Itamaraty publicou um texto dizendo que “será desenvolvido material didático próprio e colaborativo da rede”. A previsão é que o conteúdo fique pronto no primeiro semestre de 2021.