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Política Coronavírus

‘Precisamos olhar para a gripe espanhola’, diz historiadora Heloísa Starling

Autora de 'Brasil, uma biografia' aponta que país vive momento inédito com pandemia, crise política e grupos autoritários
Heloísa Starling Foto: Gustavo Stephan
Heloísa Starling Foto: Gustavo Stephan

RIO — Quando se trata de pandemias, a gripe espanhola, de 1918, tem muito a nos dizer. A avaliação é da historiadora Heloisa Starling, autora, junto com Lilia Moritz Schwarcz, de “Brasil, uma biografia” (Companhia das Letras), e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Em entrevista ao GLOBO, Heloisa alerta para os riscos que o Brasil enfrenta nesta pandemia, que combina crise política, questionamento do pacto federativo e a emergência de militantes de viés autoritário.

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Na pandemia de 1918 não ocorreu esta reação que vemos hoje, dos poderes e de setores da sociedade?

Não, pelo contrário. Estudei em detalhes a gripe espanhola em Belo Horizonte. Foram adotadas medidas drásticas de isolamento, os comerciantes protestaram muito, mas nenhum governo estadual, a prefeitura ou governo federal disse que não se podia parar por razões econômicas. Há 100 anos, ninguém saiu às ruas contra as medidas de proteção da sociedade. A sociedade se mobilizou para se proteger. O isolamento durou três meses. Mas não existiam traços autoritários na sociedade como hoje.

O Brasil, em algum momento, viveu uma situação parecida com a atual?

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Não. Esse medo combinado a completa ausência de estrutura de orientação por parte do Executivo, não. Nunca tivemos crise política, confronto da Presidência com governadores; pressão sobre as instituições democráticas; complacência por parte de setores da sociedade; emergência na rua de militantes com viés autoritário e uma pandemia, isso é inédito na História do Brasil.

O questionamento ao pacto federativo é grave...

Sim, muito. Todas as vezes que se tentou ameaçar ou romper o pacto federativo durante o período republicano não foi bom para a democracia. No Império, essa tensão gerou revoltas e repressão muito forte por parte do Rio de Janeiro. Com a República você começa a construir a ideia da federação. A partir de então, todas as vezes que o pacto foi ameaçado, foi por presidentes de perfil muito autoritário, como Floriano Peixoto, ou em situações de ditadura. No Estado Novo uma das primeiras medidas de Vargas foi queimar todas as bandeiras dos estados.

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A atitude do governo Bolsonaro, de questionar governadores, tem riscos?

A maior parte dos governadores está defendendo o povo. Estão cumprindo sua responsabilidade, sejam de direita, esquerda ou centro. Estão comprometidos com a sociedade e evitando o que parece ser o desejo do presidente, que seria ir para um confronto com as forças democráticas do país. A política que está sendo feita é uma política de confronto, inclusive com o próprio ministro da Saúde. Fico pensando que essa política de confronto com instituições democráticas pode requerer um freio e, nesse caso, poderiam ser convocados grupos de militância autoritários.

Como vê as carreatas contra o isolamento?

São movimentos com traços autoritários. Existem outros grupos, milícias, caminhoneiros, se isso começa a emergir para sustentar uma fala contra as instituições democráticas é preocupante.

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A pandemia está gerando riscos que vão além da saúde...

Sim, risco de confrontos com ingredientes totalitários. Por isso é importante criar frentes que sejam capazes de colocar limites na cruzada em defesa da democracia.

Nesse sentido, qual o principal desafio enfrentado no momento?

Nunca vivemos esse duplo desafio. Outro traço autoritário tem surgido de setores, por exemplo empresariais, que afirmam que alguns terão de morrer, os idosos. Isso é uma forma de fazer limpeza étnica. Outra fala que me preocupa muito é sobre os mais pobres. Como vamos proteger quem mora nos bairros mais humildes, nas prisões. Há cem anos atrás, isso foi pensado. A História ensina. Precisamos olhar para a gripe espanhola e fazer três perguntas pra ela: como ela foi enfrentada nos estados? Quais as medidas adotadas? As medidas deram certo?