'A rua estava cheia de gente, e ele atirou mesmo assim', diz mãe de Ágatha no primeiro Natal sem a filha

Em meio à dor da perda, família ainda não voltou para casa onde morava com a filha e não conseguiu sequer enfeitar a Árvore de Natal, que sempre era decorada pela criança
Em entrevista ao GLOBO, Vanessa revela que, na van, trocou de lugar com a filha instantes antes do tiro Foto: Guilherme Pinto/Agência O Globo

RIO - Quase cem dias após Ágatha Félix, de 8 anos, ser morta por um tiro de fuzil disparado por um policial militar , no Complexo do Alemão, a mãe da menina, Vanessa Félix, ainda não encontrou forças para voltar à casa onde morava com o marido e a única filha. Em meio a tanta dor, um alento veio no início do mês, quando a Justiça aceitou a denúncia contra o cabo da PM Rodrigo José de Matos Soares por homicídio duplamente qualificado — motivo fútil e mediante recurso que dificulta a defesa da vítima.

— A rua estava cheia de gente, e ele atirou mesmo assim. Ele cometeu um erro, e com uma arma na mão não tem como voltar atrás. Ele tem que ser responsabilizado, porque a polícia não está aí para tirar a vida de inocentes, e sim para nos proteger. Nada vai trazer minha filha de volta, e não há como apagar da minha vida o que aconteceu, mas ele precisa responder pelo que fez — disse a mãe.

Sem pedido de prisão até agora

Vanessa estava ao lado da filha quando a menina foi baleada nas costas. De acordo com as investigações da Divisão de Homicídios, o policial atingiu Ágatha quando disparou contra dois homens que estavam em uma moto. Após meses de investigação, a polícia chegou ao nome de Rodrigo Soares, que foi afastado do policiamento nas ruas e teve o porte de arma suspenso, mas nem a Polícia Civil, nem o Ministério Público pediram a prisão do PM.

“Só de falar em Natal, eu já estremeço. Eu ia tentar viajar, mas não acho que adianta a gente fugir. Eu sei que minha filha ia querer que eu estivesse bem. Então, eu tenho que seguir, dia após dia ”

Vanessa Félix
Mãe da menina Ágatha

Desde o crime, Vanessa buscou refúgio na casa da mãe, que também mora no Alemão. Muito religiosa, a família manteve o ritual de todo o fim do ano: a Árvore de Natal foi montada na sala, mas as lembranças impediram que ela fosse decorada. No ano passado, foi Ágatha quem pendurou todos os enfeites junto com a avó materna. Por isso, ninguém conseguiu terminar a montagem. A árvore está na sala, como sempre, mas sem qualquer adorno.

— Só de falar em Natal, eu já estremeço. Eu ia tentar viajar, mas não acho que adianta a gente fugir. Teremos que encarar. Eu sei que minha filha ia querer que eu estivesse bem. Então, eu tenho que seguir, dia após dia — disse Vanessa.

Escola ficou fechada nesta segunda-feira. Nesta terça, os funcionários e professores tentam dar a volta por cima e seguir em frente Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo
O GLOBO teve acesso ao interior da escola. As cadeiras amarelas e paredes azuis dão um tom colorido ao ambiente Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo
A menina foi matriculada na escola particular, no fim do ano passado, para iniciar as aulas em janeiro. Antes, ela era aluna de uma escola pública próxima à comunidade Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo
Na sala, o trabalho feito para a Semana Nacional do Trânsito ainda pode ser visto numa das paredes. Ágatha produziu, durante as aulas de Artes, placas de sinalização com cartolinas Foto: Marcia Foletto / Agência O Globo
'Ela tinha tudo para ser uma mulher incrível. Seja pelo jeito de ser, pelo desempenho escolar, pela base familiar', afirma a diretora da escola, Cristina Rodrigues Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo
Luciana Soares, coordenadora da escola, trabalha na unidade há 10 anos. Segundo ela, Ágatha era uma criança tranquila e sempre carinhosa com todos Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo
Direção e coordenação da escola acredita que mensagens de positivismo são capazes de motivar os alunos Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo
Centro Educacional Rodrigues Silva (Ceros), na Rua Doutor Noguchi 379, em Ramos Foto: Pablo Jacob / Agência O Globo

 

Foi no Alemão, onde Vanessa nasceu e foi criada, que a secretária conheceu Gilson, seu marido e pai de Ágatha. Também foi no complexo que a família sempre viveu. Contudo, à casa onde vivia com a filha, ela só quer voltar para fazer a mudança.

— Eu sei que também preciso enfrentar isso, só não precisa acontecer agora. Mas, continuar morando lá, não é mais a minha vontade. Mesmo com a Ágatha ainda viva, eu já não queria mais, porque estava sufocante. Era tiroteio todo dia, helicóptero atirando lá de cima.

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Veja onde a menina Ágatha foi baleada no Complexo do Alemão.O Largo da Birosca, na localidade conhecida como Fazendinha, é de grande circulação de pais com crianças vindas da escola.

 

No dia da morte de Ágatha, Vanessa estava de férias e tinha ido buscar a filha no colégio. A menina cursava o 3º ano em uma escola particular, onde tinha sido matriculada no início deste ano. Naquele 20 de setembro, as duas tinham decidido fazer um programa juntas: foram lanchar num shopping. Após o passeio, na volta para casa, dentro de uma van, a criança foi baleada.

MPF quer Polícia Civil fora do caso Ágatha; Procuradoria-Geral da República pede que investigação da morte de Ágatha seja feita pelo Ministério Público Foto: Reprodução

 

Vanessa procura não remoer tanto as lembranças daquele dia. Mas é inevitável: os flashes vêm à sua cabeça, assim como as lágrimas escorrem pelo seu rosto. Ela até evita contar os detalhes daquele momento. Em certo ponto da entrevista ao GLOBO, Vanessa acaba revelando que, na van, trocou de lugar com a filha instantes antes do tiro.

— Sempre falei para minha filha que ela não tinha vindo ao mundo à toa. Ela era muito especial. Eu achava que iria para a TV, ser modelo, atriz, que seria conhecida de alguma forma, mas nunca desse jeito. Mas sei que há um propósito de Deus para tudo isso. Era para ser eu. Mas, se eu morresse, a repercussão jamais seria essa. O propósito era acontecer isso com ela, para acabar com essa política de extermínio — afirmou a mãe.

“A saudade dói muito, porque sinto falta dela ao meu lado. Não está sendo fácil, mas o que me dá um pequeno alívio é pensar que minha filha está num lugar muito melhor”

Vanessa Félix
Mãe da Ágatha

Apegada à religião, Vanessa busca forças para seguir sua rotina sem a filha, que era uma grande companheira. Diz sentir falta dos momentos mais simples, como quando penteava os cabelos cacheados da menina ou quando comprava laços e vestidos para a criança. Apesar da saudade, ela tenta se manter firme.

— A saudade dói muito, porque sinto falta dela ao meu lado. Minha filha era linda e muito obediente. Minha família está muito unida. Não está sendo fácil, mas o que me dá um pequeno alívio é pensar que minha filha está num lugar muito melhor — resigna-se.

No dia do aniversário de Ágatha: 'Quero passar a data ajudando as pessoas'

Vanessa também não consegue conter a emoção ao falar sobre o próximo aniversário de Ágatha, no dia 31 de março. Este ano, não teve festa porque a família estava com uma despesa alta com o colégio particular da menina. O único pedido da filha foi comemorar a data em uma pizzaria com a família. Por isso, em 2020, Vanessa planeja fazer uma ação social no Alemão para ajudar a quem precisa.

— O aniversário dela sempre foi como carnaval. Mal acabava um e já estávamos planejando o do ano seguinte. Este ano, foi exceção. Não fizemos uma comemoração. No ano que vem, quero passar essa data ajudando as pessoas.